É raro ouvir um disco de jazz brasileiro. Afinal, o jazz nasceu nos Estados Unidos, e que brasileiro teria a audácia de desafiar um americano em sua arte nativa? Mas é claro, na música nada nunca é uma simples questão de “quem é melhor” ou “quem é pior”. Em seu mais novo disco,
Entre Marés, o Patavinas Jazz Club faz um tipo de jazz fusion extremamente brasileiro – nem chega perto de tentar copiar o modelo estadunidense. E assim conseguem rivalizar os americanos de igual para igual. Mas, mais uma vez, a questão é um pouco mais complicada.
Mais ou menos há uns 30 anos, a expressão “jazz fusion” deixou de ser um modo de descrever aquilo que todos os músicos de jazz descolado e cool deveria tocar para se tornar um palavrão. Isso por vários motivos: o primeiro e mais óbvio é a onda de puristas que formam a elite do mundo jazzístico e para quem a história do jazz acaba nos anos 60, se não antes; outro é o fato de que “fazer jazz fusion” passou a ser uma desculpa para gravar uma versão diluída e comercializada da grande arte americana que saía das prateleiras mais rápido do que sonharia qualquer Louis Armstrong ou Duke Ellington – afinal, foi lá pra essa época que algum gênio criou a teoria de que elevadores precisam de trilha-sonora. Mas a verdade é que essa expressão nunca foi exatamente adequada.
Jazz fusion, em tese, significa fundir jazz com outros gêneros musicais – seja o jazz-rock de Miles Davis em 1970 ou o hip-hop jazzístico de Maurice Brown em 2010. Mas essa idéia, em si, já carrega alguns pressupostos errados. O jazz já é uma mistura de vários elementos avulsos: uma pitada de swing, um pouco de blues, e, mais importante, uma imensa fatia do universo do músico que decide tocá-lo. Afinal, mais do que qualquer outro estilo, o jazz se embasa na expressão pessoal, e isso significa que alguém que passou a infância ouvindo rock and roll no rádio não conseguirá esconder essa influência em sua música. E também que o jazz de um grupo brasileiro nunca será o mesmo jazz de um grupo americano.
O Patavinas Jazz Club, nesse sentido, não é um grupo revolucionário, mas faz jazz tão bem quanto qualquer grupo norte-americano que se preze. Assim como o fizeram Moacir Santos e Victor Assis Brasil, e assim como o faz o grupo Delicatessen, mas, claro, à sua própria maneira. Seus músicos são excelentes, seus arranjos são de primeira, e sua pegada entre funk e samba-rock é simplesmente deliciosa. O que só mostra que prender-se a um nacionalismo exagerado americanofóbico faz com que percamos oportunidades infinitas.
Mas ser brasileiro, americano ou inglês é uma coisa um pouco complicada. De vez em quando, espera-se que um artista paute sua obra num caráter nacional. De vez em quando, não. É só lembrar, por exemplo, do exemplo tão queridinho à FUVEST: “Noventa milhões em ação, avante Brasil, salve a seleção!”. Na música popular, a coisa é um pouco diferente. Com a hegemonia das culturas americana e britânica, criou-se a necessidade de que todo o resto do mundo se defina por suas diferenças em relação a elas. Lennon & McCartney não tiveram de gravar uma versão de “Greensleaves” para serem aceitos com honra no panteão dos artistas ingleses. Ao contrário, a tradição britânica expandiu-se para incluir suas supostas inovações. Agora, se uma banda brasileira qualquer não inclui em seu disco de estréia um berimbau, um pandeiro e referências a Zumbi, ao Capitão Nascimento e a um ou dois elementos da cultura nacional que tenham importância cult no momento, logo é crucificada por ser anti-brasileira. Afinal, eles só estão fazendo o que milhões de americanos fazem a cada dia.
Isso porque, na música, existem basicamente dois tipos de nacionalismo: o primeiro é um nacionalismo ufanista e xenófobo, que nasce em geral por motivos que pouco ou nada têm a ver com a música em si – motivos políticos ou sociais, na maioria das vezes – e que acaba, em geral, gerando músicas tão exageradamente brasileiras que soam falsas; o outro é o nacionalismo verdadeiro, que nasce por um motivo muito simples: crescer no Brasil é completamente diferente de crescer nos Estados Unidos. As músicas que tocam no rádio, os filmes que passam no cinema, e os livros que se lêem nas escolas, é claro, são outros. Mas são tempos de globalização, e isso talvez tenha mudado um pouco. O que não mudou foi que a maneira de aproveitar tudo isso é unicamente nossa: um brasileiro que lê Dom Casmurro o faz de uma maneira muito diferente do que um americano o faria. Da mesma maneira, um brasileiro ouvindo rock o faz de uma maneira completamente sua: quer seja Led Zeppelin ou Legião Urbana.
O Patavinas não se força a ser brasileiro e duvido também que se force a ser jazz. Mas, apesar disso, eles são tão jazzistas quanto Miles Davis e tão brasileiros quanto Tom Jobim. A música parece sair tão naturalmente que essa escolha parece nem ter sido uma escolha. E é só assim que é possível fazer música tupiniquim: sem um pingo de artificialidade. Seja jazz ou seja samba, seja rock ou seja bossa, o que importa é ser verdadeiro. E críticos superficiais podem tachar Entre Marés de anti-brasileiro, mas será difícil encontrar um disco mais verdadeiro do que esse.
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