domingo, 30 de maio de 2010

Cálculo da Expressão

Quando obras de diferentes artistas são colocadas lado a lado em uma exposição é necessário que haja um elo muito forte para que coerência não se perca. Muitas vezes esse elo é o movimento estético a que os artistas são associados, mas quando se pretende falar em um “expressionismo brasileiro” o senso de unidade é muito menos óbvio – especialmente quando as obras se limitam a gravuras. Se por um lado a triangulação entre Oswaldo Goeldi, Lasar Segall e Iberê Camargo é bem intencionada, por outro a exposição “Cálculo da Expressão”, no Museu Lasar Segall, carece do que é mais importante em uma exposição: unidade.

A exposição se propõe mostrar a economia formal decorrente do cálculo que um trabalho artesanal tal como a gravura exige. Do que se abre mão em função dessa tentativa é a coerência temporal. Da década de 20 à década de 90, as obras variam dos primeiros rabiscos de Lasar Segall aos últimos de Iberê Camargo. O que fica evidente, mais do que a economia formal, é a defasagem da estética em relação ao tempo. Frente a um início de século XX na Europa, quando se sucederam muitos e diversos movimentos estético-ideológicos, o Modernismo brasileiro é fadado a uma antropofagia estética pela falta de uma crença ideológica. Longe de nós o horror da guerra e a falência do projeto burguês, ao contrário, nossos artistas eram os próprios filhos da burguesia a que a estética que cooptaram antes se opunha. Não que a postura modernista seja inválida, apenas que esvaziou todo o conteúdo crítico das fontes de que beberam.

É claro desde o momento em que se entra no museu Lasar Segall, uma espécie de apêndice do colégio, que se trata de uma realização de baixo orçamento. Ainda que a parceria com o mais abastado instituto Iberê Camargo tenha viabilizado a exposição, trata-se de uma mostra quase completamente de obras menores e pouco significativas. Salvo Oswaldo Goeldi, cuja sagração foi exatamente através das Xilogravuras, o que se apresenta de Lasar Segall e Iberê Camargo são literalmente rabiscos. Não é impossível de se perceber, porém, o estilo próprio de cada artista, que se reflete de alguma forma nessas obras menores. Em Oswaldo Goeldi a ressonância dos traços emocionados de Van Gogh, divertidissimamente ilustrando de Raull Bopp a Dostoievsky; e em Lasar Segall a simplificação dos traços e a geometrização das formas, melhor representados pelas diversas matrizes que se apresentam.

Quem parece particularmente perdido entre as obras é Iberê Camargo, possivelmente por causa da incoerência de sua obra com a proposta da exposição. É certo que os três artistas são mais ou menos contemporâneos, mas a produção de Iberê Camargo tem início na década de 40, momento em que as produções de Oswaldo Goeldi e Lasar Segall já estavam no fim. Naturalmente essa sutileza temporal faz toda diferença na estética. Enquanto Lasar Segall e Oswaldo Goeldi são muito mais influenciados pelos movimentos do início do século XX – o expressionismo, o cubismo e o abstracionismo –, Iberê transita entre um surrealismo póstumo e o expressionismo abstrato. Obviamente a economia formal é muito menos importante para Iberê do que para Goeldi e Segall.

Não se trata de uma exposição ruim, muito pelo contrário. Esperar conhecer as obras desses três artistas através dela, contudo, é um equivoco. Mais do que isso, para aqueles que estão familiarizados com o modernismo brasileiro, a exposição viabiliza uma série de reflexões interessantes, ainda que a proposta central não seja muito bem efetivada. Apesar de as gravuras serem em sua maioria obras menores, é através delas que melhor se pode conhecer a estética de um artista. E apesar de a infra-estrutura ser um pouco precária, o empenho da curadoria faz com que tudo pareça melhor. A exposição “Cálculo da Expressão” se encontra no Museu Lasar Segall, Rua Berta 111, e permanece de 24 de Abril a 10 de Julho de 2010.

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sábado, 29 de maio de 2010

Dois Pesos, Duas Medidas

Uma das minhas expressões preferidas a respeito de injustiças do mundo não diz respeito à fome na África, nem às guerras do Oriente Médio, muito menos à má distribuição de renda ao redor do globo, mas sim a uma banda escocesa: "Se o mundo fosse justo, Teenage Fanclub tocaria no rádio de cinco em cinco minutos”. Você, leitor, entenderia o que eu digo se escutasse Grand Prix, disco que faz 15 anos em 2010 e é um perfeito exemplar do equilíbrio que a banda consegue estabelecer entre limpeza e distorção (clique para ver o clipe de “Sparky’s Dream”) em sua sonoridade. Tal aniversário é um dos motivos da existência desse texto. O outro, antes que você me pergunte, é o lançamento de Shadows, álbum mais recente do conjunto - e que, infelizmente, não faz jus nem à frase nem à idéia de equilíbrio acima citados.

O trio de Glasgow, formado por Gerard Love (baixo), Norman Blake (guitarra base) e Raymond McGinley (guitarra solo), desde o início de sua carreira colocou os ingredientes de sua música numa balança: de um lado, o peso das guitarras distorcidas e raivosas (que fizeram a cabeça de Kurt Cobain em trabalhos como Bandwagonesque); do outro, a leveza dos coros, arranjos de cordas e versos simples de amor. O fiel que a equilibra é justamente Grand Prix, que consegue sintetizar em sua essência o som do fã-clube adolescente – altamente radiofônico e acessível.

Herdeiros diretos da escola Beatles-Byrds-Big Star de artesões rock (leia-se: canções pop de três minutos com riffs ganchudos e letras cativantes), o que chama a atenção no som dos escoceses não é a inovação, mas sim a simplicidade - poucos artistas teriam a sinceridade de escrever um refrão cujo cerne é "o seu amor é o lugar de onde eu vim" sem soar piegas. No disco de 1995, essa marca aparece na declaração de amor de "About You", no consultório sentimental do trocadilho esperto de "Neil Jung", no "fundo oceano de melancolia" sugerido na agridoce "Mellow Doubt" e na beleza de versos como "I'd steal a car to drive you home" (de "Don't Look Back")

Falando assim, pode parecer que tudo o que você ouvir do Teenage Fanclub vai soar como "o disco perfeito que Lennon & McCartney nunca fizeram". De fato, algumas das canções acima citadas poderiam muito bem merecer esse rótulo. Mas não é o que acontece com Shadows. (Vale aqui dizer: os adjetivos das próximas linhas aparecem por comparação com os trabalhos anteriores do TFC, não com o panorama musical de hoje). Shadows, é, a princípio, um disco desequilibrado - seja no sentimento que envolve certas faixas, seja nos arranjos que massificam os pequenos detalhes (teclados, cordas, certos coros), como uma versão mal cuidada do ideal do Wall of Sound de Phil Spector.

O Teenage Fanclub é uma banda que, na maioria das vezes, soa como se tivesse injetado em si própria uma overdose de serotonina - certa vez, ela foi classificada como "insanamente feliz”. Um exemplo dessa alegria em Shadows é "Baby Lee”. Entretanto, a serotonina faz falta em alguns momentos, por exemplo, na faixa de abertura, "Sometimes I Don't Need to Believe in Anything", e em "Dark Clouds" – que trazem á tona uma melancolia que soa forçada e não natural no conjunto da obra do Teenage Fanclub. Em outras horas, percebe-se que há sim um brilho escondido - na romântica "When I Still Have Thee" ou no clima de "domingo ensolarado" que se estabelece em "Sweet Days Waiting" - mas que não atinge a superfície e torna-se opaco por detalhes de mixagem e produção. Além disso, falta aqui um bocado do tal peso muito utilizado no início da trajetória dos escoceses - as guitarras pouco aparecem, e quando o fazem, são em fraseados limpos, fazendo suspirar os amantes da (por vezes pouca, mas existente) sujeira de outrora.

Por favor, ignore o infame trocadilho: Shadows é um disco que não chega a fazer sombra nos melhores trabalhos do grupo de Glasgow. Porém, quando posto à luz da comparação com muito da música que se faz hoje, trata-se de um conjunto de canções que soa honesto e bonito - uma frase clichê a respeito disso poderia ser "um disco mediano do Teenage Fanclub ainda sim consegue ser um dos melhores do ano". Mas sinceramente? Se você já ouviu o trio, Shadows é um disco divertido, mas esquecível. Pra quem nunca tinha sequer ouvido falar de Teenage Fanclub, saiba apenas o seguinte: é só dar uma brecha que eles estão prontos para – parafraseando “Don’t Look Back” - roubar seu rádio e te fazer sorrir com a simplicidade de quem canta a vida com um sorriso no rosto e um coração apaixonado.

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Algumas notas de rodapé, para terminar:

Wall of Sound: foi um estilo de mixagem musical inventado pelo produtor e compositor Phil Spector, e que marcou o início dos anos 60. Consistia em literalmente criar uma massa sonora na qual os instrumentos, embasados numa orquestra de cordas, não eram percebidos nos seus mínimos detalhes, mas sim como um som encorpado e “cheio”. Alguns sucessos marcados por esse estilo foram “Be My Baby”, com as Ronettes, “Unchained Melody” e “You’ve Lost That Lovin’ Feelin’”, com os Righteous Brothers, e “Then He Kissed Me”, com os Crystals.

Power Pop:Um nome muito atribuído à tal “escola Beatles-Byrds-Big Star de artesões rock” é o rótulo “power pop”. Achei interessante citar isso porque, nos últimos tempos, diversas bandas coloridas e de qualidade duvidosa têm utilizado o termo em um significado diferente do original. O recém-finado Alex Chilton provavelmente deve estar se remexendo no túmulo por isso. Recuse imitações: power pop mesmo é o do Teenage Fanclub, do Big Star, do Badfinger... e não qualquer coisa com calças laranjas fluorescentes que geme a cada três segundos.

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quinta-feira, 27 de maio de 2010

Novo de Allen Funciona


Woody Allen, figura já conhecida de todo cinéfilo, esteve fora. Sim, foi dar um passeio pela Europa. É verdade que lançou ótimos filmes, entre os quais Match Point e Vicky Christina Barcelona talvez sejam os melhores, mas aonde estava aquele Allen clássico, o resmungão, irônico, sarcástico, solitário, morador dos subúrbios nova iorquinos?

Graças aos ingredientes citados, o recém-lançado Tudo Pode Dar Certo é um típico filme do diretor. Allen retorna a seu estilo já característico, que é visível desde seus primeiros longas: os diálogos inteligentes, o timing certo da piada, e as brincadeiras com a incerteza da vida e da morte que são os temperos da obra do diretor. No entanto, esse retorno não se dá de maneira repetitiva, pois há uma reconstrução de situações, personagens e clima.

O espírito genial se revela logo no primeiro grande monólogo de Boris, o protagonista interpretado por Larry David, que mostra todas as premissas do filme em praticamente uma única cena. Desde a primeira palavra pode-se ver que o personagem de David não é nada menos que o próprio Allen, aquele mesmo que foi indicado ao Oscar por Annie Hall, de 1977, mas com uma pitada de humor politicamente incorreto. Está tudo lá, o egocentrismo, o medo da morte, Manhattan, as tiradas e a vontade de mostrar que esse mundo não é nada mais que uma questão de sorte, pois é anárquico e incontrolável.

É esse Boris, ou Allen, um quase prêmio Nobel de Física que teoriza sobre o mundo para os amigos, que se sustenta após o término de seu casamento dando aulas de xadrez – que na verdade não passam de um passatempo e pretexto para insultar os alunos. Contudo, numa noite aparentemente comum, sua vida muda no momento em que é abordado por Melodie, uma garota recém-chegada do interior que não tem onde ficar. Percebendo sua ingenuidade, o mal humorado a acolhe, o que muda sua rotina. Após algum tempo, admirando cada vez mais Boris, Melodie se declara.

É dentro dessa história que circula uma série de personagens secundários que vão, cada um a sua maneira, encontrando seus caminhos na vida e se ajustando com o que tem. Seja a mãe de Melodie que se abre a novos horizontes, ou o pai que decide se livrar da pressão da sociedade, o importante é olhar a vida de uma nova perspectiva. Tudo se encaixa perfeitamente no roteiro, assim como na própria vida.

E talvez seja esse o maior mérito de Allen - e de todos os bons artistas: conseguir retratar seu próprio mundo, mas fazendo de diversas situações uma metáfora para a vida de todos. Woody Allen traz à tona sempre as mesmas questões, mas, e daí? Todos nós, pretensos gênios, solitários, moradores das grandes cidades, queremos nos divertir com a irracionalidade de nossas vidas, assim como ele. No fim das contas, o remédio que Boris nos oferece para viver nesse mundo caótico é o de conviver com a sorte, se contentar com o que der certo, com o que funcionar para nós. Whatever Works. Mas sem nunca, claro, deixar de reclamar.

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segunda-feira, 24 de maio de 2010

Namaste, Lost

Antes de tudo, é bom deixar claro, o texto a seguir é livre de spoilers.

Eu pensei um bom tempo em como fazer um texto que fosse tão atraente para os fãs de longa data quanto para os que nunca viram um só episódio. Talvez o melhor seja começar do começo: todo grupo de amigos tem um membro que passa mais tempo discutindo viagens no tempo e a moralidade de Jacob do que fazendo, bem, qualquer coisa que seja importante. Entre os meus amigos, eu me orgulho de ser esse membro. E por mais que eu tenha tentado instilar essa adoração no restante do grupo, eu sempre acabava recebendo respostas, digamos, pouco entusiásticas. E isso não é surpresa. Por mais detalhadamente que eu narrasse os episódios, seria impossível transmitir o que mais importa no show: o fator humano. Despido disso, Lost não é nada mais do que um apanhado de tramas nerds, com mais reviravoltas do que a filmografia completa de M. Night Shyamalan. O que, convenhamos, também tem seu charme.

Pois bem, agora são uma e meia da manhã, eu acabei de assistir ao último episódio da série; novamente, não tenho a menor idéia se escreverei que esse foi o melhor episódio de todos ou as duas horas e meia que estragaram o programa; e, pela reação na internet dos outros fãs, parece que não sou o único. O que é algo meio arriscado, considerando que eu já pautei um texto nessa mesma premissa. Ainda assim, talvez isso seja nossa própria culpa. Não consigo deixar de pensar que, embora esperasse ser surpreendido, esperava que isso ocorresse nos meus próprios moldes: que os mistérios que eu tinha em minha cabeça fossem resolvidos de um jeito que eu não esperava. Ao invés disso, Damon Lindelof e Carlton Cuse (escritores do finale) tomaram cenas que eu tomava como fato, transformaram-nas em mistérios e, então, apontaram-nas na direção de uma solução. O que pode não ser um método exatamente tradicional de se contar uma história, mas se encaixa perfeitamente em Lost.

Não me leve a mal, eu ainda estou embasbacado com os dez minutos finais. Ainda estou com vontade de perseguir os produtores do show e assassiná-los de uma maneira que seja longa e dolorosa. Mas – de novo sem revelar detalhes da história – há certos momentos no episódio que nos obrigam a olhar para trás e relembrar momentos das temporadas passadas. E, olhando assim em perspectiva, por mais mirabolante que seja a trama que fecha o seriado, seria difícil terminar Lost com mais humanidade. Os personagens continuam apaixonavelmente acreditáveis, os embates psicológicos continuam sem solução, o mundo continua impossível de ser dividido entre bem e mal. E os detalhes da trama continuam tão ininteligíveis quanto cada momento dos seis anos que se passaram.

Talvez esse não tenha sido o final por que tanto esperamos. Não há dúvida de que por pelo menos mais algumas semanas, a internet continuará lotada de fãs querendo a cabeça de J. J. Abrams. Entretanto, a verdade é que, se Lost acabasse da maneira como todos imaginávamos que terminaria, estaríamos ainda mais desapontados do que estamos agora. Quer você goste das respostas que foram dadas ou não, é impossível negar que, após seis temporadas, os escritores continuam resistindo à tentação de fornecer respostas fáceis aos mistérios que, por mais que afirmemos que queremos ver desvendados, perderiam o sentido assim que não pudessem ser discutidos por uma multidão de fãs nerds. E, pois bem, após uma finalização nada conclusiva, continuaremos importunando nossas rodas de amigos com teorias sobre viagens no tempo e a moralidade de Jacob. Namaste, Lost. See you in another life brotha.

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sábado, 22 de maio de 2010

O nonsense britânico de Black Books: nem velho nem novo


Certo professor disse um dia que as pessoas tendem a associar tudo que é velho com qualidades negativas, e tudo o que é novo com qualidades positivas. Antiquado, ultrapassado, passado. Moderno, recente, atual... Chamamos algo de novo porque pressupomos que está substituindo outro algo, que por sua vez deixou de cumprir sua função por ser simplesmente... Velho. Mas esse julgamento de valores muitas vezes se inverte. Quem nunca ouviu alguém dizer que “nos velhos tempos tudo era melhor”? Puro saudosismo dos nossos pais e avós? Provavelmente diremos o mesmo aos nossos filhos.

Quanto à arte em geral, sinto que existe essa admiração pelo antigo, a tradição – um compositor falecido, um pintor ignorado pelos seus contemporâneos, um filme clássico – e uma grande desconfiança em relação a tudo que é novo. Isso, é claro, devido a essa fase que o mundo vivencia: é muito fácil produzir algo hoje, muito mais do que era no tempo dos nossos pais (uma das razões pelas quais o professor citado dizia ter inveja da geração nascida nos anos 90) e os bons achados acabam se perdendo em meio à confusão. E a noção do tempo também mudou: hoje, o que aconteceu há três anos já é considerado passado.


Tendo dito isso, apresento-lhes Black Books, um sitcom inglês (ou simplesmente britcom) de 2000, entre o velho e o novo. Mas que poderia muito bem ser de 1970. Ou de 2012. Porque afinal, humor não tem época para se manifestar, e Dylan Moran, que é um dos escritores da série e também interpreta um dos personagens, sabe bem disso.


O programa, exibido pelo Channel 4, gira em torno de 3 personagens principais: Bernard Black (Dylan Moran), dono de uma pequena livraria em Londres homônima à série; Fran Katzenjammer (Tamsin Greig), aparentemente a única pessoa a conseguir manter uma relação de amizade duradoura com Bernand; e Manny Bianco (Bill Bailey), figura um tanto quanto excêntrica que passa a trabalhar e morar com Bernard após largar seu emprego como contador no primeiro episódio.


A livraria do título é pano de fundo para as bizarrices de cada um deles. As paixões de Bernard são fumar, beber e ler livros, ignorando regras de conduta social e mantendo-se isolado do mundo exterior. Sua falta de higiene é mostrada logo no começo, no terceiro episódio, quando Manny resolve contratar alguém para limpar a loja. No entanto, o aspecto mais interessante da sua personalidade excêntrica talvez seja a completa falta de traquejo ao lidar com seus clientes. Antipático e ranzinza, sua última preocupação é cativar as pessoas para que comprem livros. (uma das minhas cenas favoritas: “Are they real leather?” “They’re real Dickens”)


Fran é uma solteira neurótica, com uma vida amorosa desastrosa, dona da loja vizinha à livraria (Nifty Gifty). Ela vê em Manny uma oportunidade para que a livraria seja mais bem cuidada, e é ela quem convence Bernard a contratá-lo. Manny, com suas camisas coloridas e seu zelo pela cabeleira e barba, se contrapõe a Bernard, seja pela simpatia que desperta nas pessoas ou pela sua generosidade.


A série tem 3 temporadas, de 6 episódios cada. Ou seja, dá pra assistir em uma semana tranquilamente. E o humor surreal e o sarcasmo típicos do humor britânico não deixam de funcionar, por mais que se repitam. Mas, às vezes, só a expressão facial dos atores é suficiente para umas boas risadas. Sem contar as participações de convidados como Keith Allen, Simon Pegg (que contracenou com Moran também em Run Fatboy Run) e David Walliams.


No entanto, não espere grandes enredos de todos os episódios. Embora todos tragam cenas hilárias, alguns não correspondem às expectativas. O episódio final, apesar de engraçado, não traz uma conclusão – apesar de não acreditar que tenha sido essa a intenção, vale ressaltar essa observação para aqueles que esperam por um “final”. De qualquer forma, é uma boa fonte de risadas e de citações absurdas.


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quinta-feira, 20 de maio de 2010

Esse Você Precisa Ouvir: Grace, de Jeff Buckley

Antes de tudo, algo importante deve ser dito sobre Jeff Buckley e Grace: você nunca viu ou nunca verá algo tão parecido com ambos. Pode buscar similaridades mil com outros artistas e canções, - algo que até será feito nas próximas linhas - mas nenhum deles uniu tantos atributos em um lugar só. Dono de uma voz potentíssima, com extensão de cinco oitavas, – o normal nos humanos é de apenas duas – usou-a com toda a propriedade, encarnando vários mitos em seu próprio corpo – e utilizando-os para criar sua própria imagem lendária.

Filho de pai ausente e genial - Tim Buckley, trovador maldito dos anos 60 que misturou rock, folk e jazz – Jeff foi criado por uma mãe severa e um padrasto compreensivo, que lhe deu discos do Led Zeppelin e um incentivo para as artes. Começou no cenário underground de Nova York tocando em botecos - como se pode ver no EP Live at Sin-è - e acabou conquistando fãs como Bono Vox e Paul McCartney. Morreu de maneira tragicômica, morrendo afogado no rio Mississipi ao som de "Whole Lotta Love”, em 1997.

Buckley foi Nina Simone ao usar sua voz com tal doçura e sofreguidão que até chega a incomodar - e dela fez um cover, "Lilac Wine". Page & Plant em "Eternal Life", facada guitarrística em corações solitários e tempestuosos. Foi Van Morrison ao apropriar-se de símbolos e metáforas aliados a uma riqueza melódica e a uma voz marcante. Leonard Cohen e Morrissey nas letras com uma melancolia poética, quase niilista. Cobain ao explorar o ruído e a dissonância e ao esvair-se de forma trágica deixando uma obra curta e cheia de simbologias para trás.

Mas também mostrou sua personalidade ao unir tão diversos caracteres, sendo um filho bastardo do rock alternativo dos anos 90, do folk sessentista e do jazz. Seus arranjos soam ao mesmo tempo simples, mas refinados e intrincados. Em Grace, reconhecido por muitos como um dos discos “mais tristes já feitos”, o cantor assume-se um amante bêbedo em "Lilac Wine”, pede desculpas e sente-se miserável em "Last Goodbye”, declara que o amor não tem fim na pungente balada "Lover, You Should've Come Over" e mostra-se sobre o efeito de drogas em "Mojo Pin”. Em meio a toda essa nebulosidade, busca a redenção na desesperança, como na irretocável regravação da "Hallelujah”, de Cohen – que o próprio autor considera a melhor gravação da música.

Grace, de 1994, é seu único disco lançado em vida. Não é possível se dizer que foi o suficiente, pois almas atormentadas como a de Buckley costumam ter muito a oferecer para o público, mas foi o suficiente para que uma obra precoce deixasse fãs saudosos, provocasse lágrimas em corações sensíveis e guardasse o lugar de seu autor entre os gênios de sua época.

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terça-feira, 18 de maio de 2010

Tim Burton na lógica do Chapeleiro Maluco: Alice no País das Maravilhas

Decepcionante. É isso. Alice não empolga. Talvez nem seja culpa de Burton, que vive absorto no próprio mundo. Não que permitir uma música da Avril Lavigne no fim do filme não seja uma heresia, mas Burton não está lá. Em todo o caso Charles Dodgson, o famigerado Lewis Carroll, não teria gostado nem um pouco disso aqui. Nesse cenário assustador, a Disney faz o papel do gato risonho, enquanto Burton é a própria Alice. Pra quem não sabe aonde quer chegar, não importa o caminho que se escolhe. E Burton não sabe mesmo aonde quer ir, mas a Disney sabia, e acabou resultando nisso.

O visual é espetacular, tudo bem, mas, e aí? Só? Sim. O roteiro não convence. A premissa de não copiar o original e trazer uma Alice mais velha foi interessante inicialmente, contudo parece sem nenhum sentido ao passo que não é explorada, servindo só para amarrar as pontas de uma história que não se sustenta. Além disso, os livros têm muitos pontos relevantes que foram deixados de lado, como a atmosfera surreal/non-sense e os jogos de lógica, que estão presentes em muitas ocasiões.

Do jeito que foi feito, o filme aborta qualquer chance de outras interpretações, que era uma das grandes sacadas do livro. Drogas, passagem pela adolescência, psicanálise infantil? Esqueça, é tudo sobre o casamento indesejado e a sociedade conservadora e blá blá blá.

Tudo é extremamente mecânico. A trilha sonora não consegue criar nenhuma tensão e, por vezes, parece isolada no meio do filme. Os próprios atores, Johnny Depp como maior exemplo, também só levam a frente seus velhos trejeitos e ficam devendo nos papéis. É impossível não notar a completa falta de surpresa de Alice em ver todos aqueles monstros e coisas estranhas. Helena Bonham Carter é a única que se salva, mesmo assim fazendo uma interpretação bem forçada.

Acho Tim Burton um dos únicos diretores de Hollywood que faz um cinema próprio e Alice desaponta porque poderia ter sido feito por qualquer outro. E a fantasia de Peixe Grande? E a atmosfera sombria de Noiva Cadáver? Humor negro de Fantástica Fábrica de Chocolate? Não, não e não, todas essas marcas características foram deixadas de lado. É um filme sem coração, genérico. Quando apareceram os créditos do filme mal consegui acreditar que o nome de Burton estava lá.

A infantilização de uma história que não é infantil, algo que ganha força quando o chapeleiro diz que a vitória do bem sobre o mal era inevitável, separando tudo em um maniqueísmo barato e sem nenhuma imaginação é um problema também. É como se tivessem confundido Lewis Carroll com C.S. Lewis e, então, transformaram Alice em um Nárnia, ou seja, um monte de batalhas do bem contra o mal, até a cena final, que é o ápice dessa bizarrice.

Não me leve a mal, sou, assim como muitos, fã de Burton - e é exatamente por isso que não gostei do filme. Parece que tudo é um pastiche, é tão comercial que perde qualquer sentido. Tudo foi simplificado em nome dos efeitos especiais e do visual BlockBuster adotado. E é assim, nessa lógica de chapeleiro maluco, que o pior filme da carreira do diretor se tornou seu maior sucesso de bilheteria. É como se Burton estivesse no País das Maravilhas. A Disney agradece.

*Este texto é uma colaboração de Arthur Hussne Bernardo para o PTTP

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domingo, 16 de maio de 2010

Jonathan Safran Foer Não Cabe em um Tablet

O surgimento do Kindle, iPad e outros tablets menos glamourosos, acompanhados da euforia e do hype que lhes cabem, fez alguns fãs de livros tremerem. Talvez do mesmo jeito que os CDs fizeram os fãs de LPs tremerem e os DVDs, os fãs de VHS. Formatos novos como esses afirmam nas entrelinhas que os anteriores são limitados e ultrapassados, e apesar disso se aplicar aos dois exemplos anteriores sob vários aspectos, a única coisa que os tablets oferecem aos leitores é a mobilidade. Medindo os prós e contras com cuidado, o que se tem no final é negativo. E não foram os monstros sagrados da literatura mundial que me fizeram ter certeza dessa conclusão; foi Extremamente alto & incrivelmente perto, o segundo romance de Jonathan Safran Foer, lançado em 2005.

Safran Foer é um dos autores mais comentados da literatura americana atualmente. Chama a atenção o fato de, mais que um escritor novo, ele ser um escritor jovem: quando publicou seu primeiro romance Tudo se Ilumina em 2002, tinha apenas 25 anos. O livro ganhou um simpático filme pouco depois chamado Uma vida iluminada por aqui. Gostaria de poder falar mais sobre isso, mas somente assisti ao filme e dei uma espiada no livro. Só que foi suficiente pra ver que a sua literatura tem muito a acrescentar ao nosso tempo e que isso da idade não passa de curiosidade.

Extremamente alto & incrivelmente perto é sobre traumas. A história se desenvolve sob três perspectivas, três primeiras pessoas: a principal é Oskar Schell, um garotinho precoce cujo pai morreu nos ataques de 11 de Setembro ao World Trade Center. Ainda muito atormentado, Oskar encontra uma chave escondida no armário do pai e então se dedica a encontrar a fechadura. Os outros dois eixos da história ajudam a completar as lacunas da jornada do menino, e vice-versa.

A difícil tarefa da tradução ficou por conta de Daniel Galera, que fez um trabalho excelente. O livro foi publicado pela Rocco, integrando a coleção de novos autores Safra XXI: apropriado. O 11 de Setembro é possivelmente o acontecimento que historiadores irão apontar como marco inicial do século pelo seu impacto sócio-político no mundo. Extremamente alto não trata de nada disso, porém. Os ataques são levados para o nível de tragédia humana e é assim que desastres como esse devem ser lembrados, e não como, pasmem, uma “vitória metafórica” (pois é, já ouvi) ou sei lá o quê. Safran Foer faz isso sem sentimentalismo barato e com uma forma notável.

Dá gosto ler algo tão inovador. Os recursos usados pelo autor são vários: cartas, reprodução de cadernos e outros pedaços de papel de maneira bem realista - quase um Watchmen; às vezes brincadeiras com o próprio texto de modo praticamente concretista; ao invés de ilustrações, fotografias; e até mesmo vídeo, considerando que vídeo é uma seqüência de quadros. Tudo isso em um livro, no formato tradicional; é surpreendente, de verdade. E eu não consigo me convencer de que isso não seria perdido em uma tela de LCD.

“Internet mina poder de concentração dos jovens, diz estudo”; acredito que seja bem por aí. Claro que estou falando por mim, mas a informação em excesso da internet aliada à pressa me forçam a passar rapidamente por muitas coisas quando deveria dedicar um pouco mais de atenção a elas. Isso funciona na internet e logo se transforma em um processo mecânico, automático. O que impede algo assim de acontecer com um tablet? Afinal, ele é só um computador com outro design. Também sei que a concentração varia de pessoa para pessoa e que os mais atentos não serão prejudicados. Mas não é só isso.

Quem freqüenta tumblrs, uma espécie de blog destinado a postagem de vídeos, imagens, fotos e textos curtos, sabe bem que na internet se encontra de tudo. Tudo. Portanto, fui educada a diante de uma tela não prestar atenção e dificilmente me surpreender. Pode parecer simplista, porém não é: fotografias, páginas propositadamente em branco, marcas de caneta etc, não fazem parte do universo literário impresso tradicional. O impacto que esses recursos têm no papel é infinitamente maior do que na tela; tudo parece natural nela, por mais que se saiba que se trata de um livro. Não é a mesma coisa.

Isso sem falar do peso, do cheiro, da textura, dos vincos nas lombadas dos mais queridos, das observações à lápis nas bordas, nos recortes de jornal guardados no meio de alguns, nas dedicatórias, nas marcas dos dedos, do tempo.

Acho que dá pra viver sem mais essa mobilidade.


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sexta-feira, 14 de maio de 2010

Esse Você Precisa Ouvir: 69 Love Songs, do Magnetic Fields

É bom explicar desde o início: esse não é um Esse Você Precisa Ouvir usual. Talvez fosse melhor nem aplicar esse rótulo a ele. Para falar a verdade, esse não é nem um texto planejado; é mais uma forma de jogar no papel tudo o que sobrou de uma discussão que eu tive com o Noa. Há pouco tempo, após terminar uma apresentação para a faculdade à qual eu dediquei muito mais tempo e esforço do que o biologicamente saudável, eu me vi imerso num debate – que nós já havíamos tido várias vezes, mas que dessa vez se personificou na figura de Lady Gaga – a respeito da mesma questão de sempre: até que ponto o pop é pop e a arte é arte? O que, pensando bem, foi uma péssima idéia. Primeiro porque eu teria de acordar cedo no outro dia e eram 11 horas da noite. Segundo porque todo mundo sabe que esse tipo de discussão se arrasta por horas a fim e nunca chega a nenhum lugar. E, no final, eu acabei deitado na minha cama, às 2 da manhã, ouvindo o 69 Love Songs, do Magnetic Fields e pensando em como eu não estava com vontade de acordar quatro horas depois e ir para a aula de Filosofia. O que, apesar de não ser exatamente uma conclusão da discussão, é extremamente próximo disso.

Isso porque, no álbum, o grupo de Stephen Merritt disseca um dos fenômenos mais característicos da música pop: a love song. E veja bem, quando eu digo “disseca”, eu quero dizer literalmente isso. São 69 love songs, distribuídas entre 3 CDs (nada que você não poderia ter deduzido do título, mas considerando que a Guerra dos Cem Anos durou 116 anos, eu achei melhor explicitar), cada uma a partir de uma persona diferente: desde a paixão espiritual e religiosa (“Kiss Me Like You Mean It”) até o relato de um one night stand em Paris vivido por um oficial do Exército e uma dançarina (“The Night You Can’t Remember”), representados por estilos tão variados quanto um blues (“Underwear”), música étnica (“World Love”) e pseudo-experimentalismo (“Experimental Music Love”). Merrit destila sua própria personalidade em dezenas de personagens, em um pot-pourri da história da música pop e, justamente por isso, ele não soa inautêntico: em “Punk Love”, por exemplo, o punk de Merrit é o punk de sua própria interpretação, não o punk de 77, descaradamente copiado por mais um amador.

E é nesse momento que você pensa: “Meu Deus! Sessenta e nove músicas! São quase três horas de música sugeridas pelo mesmo cara que me mandou ouvir Suicide e Christian Scott! Qual é a chance de eu tentar ouvir isso?” Pois bem, é aí que está a grande sacada do disco: por mais complexos que sejam os sentimentos representados nas canções, por mais absurdos que sejam os personagens que as executam, por mais complexos que sejam os estilos sob os quais elas se constroem, ao contrário de, bem, tudo que eu recomendei até agora, o álbum é supreendentemente acessível e maravilhosamente... pop. O tipo de música que qualquer music geek (categoria na qual, se vocês estão bem lembrados, eu me incluo) ignoraria à primeira ouvida. Isso, se o disco não fosse tão profundo. Se não fosse tão honesto. Se não fosse tão genial.

Pode até ser que a discussão com o Noa não tenha chegado a nada. Afinal, eu continuo sem achar que a Stefhany é o novo Shostakovich, ainda tenho minhas dúvidas a respeito do status de Lady Gaga como artista e não acho que Cesar Menotti e Fabiano sejam um perfeito ícone de nossa época. Sei, entretanto, que é possível ser pop e expressar-se com tanta profundidade quanto qualquer obra de arte, e 69 Love Songs é a perfeita prova disso. E é isso que importa, certo? Quem sabe agora talvez eu consiga dormir tranqüilo. E assistir à minha aula de Filosofia.

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quarta-feira, 12 de maio de 2010

A Beleza do Cotidiano Com Olhos de Iniciante: Apanhador Só, da Apanhador Só

Um jeito interessante de pensar no auto-intitulado e recém-lançado disco da Apanhador Só é imaginar contrastes: em plena Rua Augusta, indies de calças xadrezes e óculos de borda grossa (sem lentes de grau, obviamente, só pra manter o hype) dançam frevos e sambinhas regados a guitarras e teclados. Ou ainda: o encontro de Stephen Malkmus e Rivers Cuomo com Paulinho da Viola e Luiz Gonzaga em pleno domingo à tarde de sol para uma jam session. Porém, essas duas descrições soam incompletas: a elas falta o lirismo peculiar de quem é “marinheiro de primeira viagem”, que se encontra em todas as faixas de Apanhador Só.

Antes que você pergunte: mas quem raios são esses caras? Uma breve apresentação básica: a Apanhador Só é composta de Alexandre Kumpinksi (voz e guitarra), Felipe Zancanaro (guitarra), Fernão Agra (baixo) e Martin Estevez (bateria), nasceu em Porto Alegre no meio da década e após gravar dois EPs chega ao primeiro álbum (disponibilizado para download no site da banda). O nome da banda é uma colagem: remete tanto ao livro O Apanhador no Campo de Centeio quanto à “Marinheiro Só”, um clássico de Caetano Veloso.

As últimas linhas pareceriam sem propósito maior – apenas uma curiosidade banal - se não fosse a informação que ali está implícita: o mote da Apanhador Só é literalmente misturar as guitarras do rock (representado indiretamente pelo livro de Salinger) com os ritmos e as harmonias da música brasileira. Trata-se de uma idéia que em si não é inovadora - desde os tropicalistas, passando pelos Picassos Falsos até desembocar no manguebeat de Chico Science - mas a cada vez que é feita gera novos resultados. É uma mistura que tem sido utilizada com bastante freqüência na última década. Boa parcela de "culpa" disso pertence aos Los Hermanos e seu primeiro e subestimado disco, onde Camelo e Amarante botaram os descolados pra dançar com o frevo de "Pierrot" e o ska-forró de "Sem Ter Você", só pra ficar em dois exemplos. Mas este Apanhador Só exibe um interessante frescor de bom humor e uma poesia de quem vê o mundo com olhos de iniciante, empolgando e alegrando quem se propor a escutá-lo.

Fica difícil resistir ao charme de "Origame's Over" e o seu cultivo à beleza das pequenas coisas ("Que é pra/cantar meninas/pintar esquinas/dobrar ori/game's over") ou ao balançado brejeiro de "Maria Augusta" e sua proposta de arrasta-pé. "Vila do Meio Dia" traz a esperança e o otimismo no meio a uma série de coisas ruins ("O meu quintal parou de dar maracujá, uva e limão/Mas com um beijo da Maria tudo vai se ajeitar") - com direito a um belo coro e um empolgante "lá-iá-lá-iá".

E até mesmo o que é triste no mundo se torna cativante pelas mãos da banda: seja a discussão de casal em "Pouco Importa", seja a tentativa de reconquista - ainda que improvável - e os pequenos detalhes ("Perfume atrás da orelha/Um vestido bem vestido/Um sorriso no rosto/Um punhado de amigos") de algo que já se partiu em "Bem Me Leve". Ou ainda relacionamentos que não se compreendem e se deterioram, em "Peixeiro" e "Nescafé" - a primeira brinca com a ironia, enquanto a segunda idealiza uma solução ("Em que sonho eu sonho meu sonho igual ao teu?").

Não se surpreenda, entretanto, se o disco lhe parecer indigesto de partida: a mudança contínua de andamentos e o barulho das guitarras à moda do Yo La Tengo podem assustar os incautos. Mas a cada escutada, novos elementos se descobrem e tornam o disco mais prazeroso para o ouvinte - lá pela quarta ou quinta vez você conseguirá ouvir nas músicas instrumentos lúdicos como "sacolas plásticas", "interruptores de luz", "balão de aniversário" e "roda de bicicleta". São essas pequenas sonoridades que acentuam ainda mais a importância do cotidiano como ponto de partida para um novo olhar sobre a realidade - algo que aproxima a banda dos poemas de Manuel Bandeira e Mário Quintana.

Se tudo isso que foi dito ainda não foi suficiente pra te convencer a dar uma chance de ser apanhado por esse disco, só resta dizer uma coisa: para o frio tenebroso e triste que se anuncia para os próximos meses, parece não haver lançamento recente melhor para te deixar com um sorriso bobo no rosto que Apanhador Só.

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segunda-feira, 10 de maio de 2010

O Exterminador do Futuro 2 - O Julgamento Final (1991)

É um filme de ação, mas que questiona a natureza humana de destruição. Ganhou todos os prêmios de Efeitos Especiais da época. Sucesso de público indiscutível. Foi o filme mais caro até então feito. E foi escrito, dirigido e produzido por James Cameron. Seria a sua melhor obra?

Sim, estou falando de Terminator 2: Judgement Day. O filme que está presente em todos top100 de fãs de cinema e na metade dos de críticos, além de ser respeitado por fãs de ficção científica. Mais do que isso, entrou pra cultura pop. É o tipo de filme que não precisa ser apresentado, ao menos por se tratar de um exterminador que veio do futuro (dã) interpretado por Arnold Schwarzenegger, falando o famoso “Hasta La Vista Baby”. E por incrível que pareça, o jargão tão repetido, só é falado uma vez durante os dois filmes.

Mas o que o tornou um clássico? Um antecessor bom. E o tal se assemelha a todos os grandes filmes de ação em que as catástrofes são em pequena escala: Acontece em Los Angeles. E assim como em Blade Runner, num futuro próximo e possível, andróides serão armas de destruição de potencial infinito voltados contra a raça humana. Mas de uma forma sincera, o filme (assim como a respectiva seqüência) não faz reflexões existenciais profundas, apesar de ambas (Terminator 1 e Blade Runner) serem baseadas em obras literárias respeitadas do mesmo gênero.

O personagem em Exterminador 1 pode até ter feito a carreira de Schwarzenegger, mas foi com o segundo que ele ficou de fato eternizado. Além de algumas falas a mais, há carisma e humor naquele ator, que antes da franquia, só havia feitos filmes baseados no seu físico notável. E apesar de o filme ter sido lançado em 1991 - e a história se passar em 1995 - o clima anos 80 está mais latente do que nunca. Os penteados, os fliperamas, a trilha sonora. Destaque para toda a seqüência ao som de "You Could Be Mine" de um Guns N’ Roses no auge, que representa melhor do que ninguém essa transição entre os anos oitenta e noventa.

E se sobrepondo à qualidade dos efeitos que até hoje impressionam, o conteúdo em si das cenas se destaca. Cenas como helicópteros perseguindo automóveis, caminhões perseguindo lambretas, além das individuais do próprio exterminador, são exageradas na medida certa. O que se percebe durante toda a obra é isso. Não a originalidade, mas a forma como é montado.

Característica que tentou ser repetida em Avatar, mas sem tanto sucesso, pelo menos no aspecto qualitativo. A mensagem explícita, sem analogias forçadas durante o filme: “É da natureza de vocês se destruírem”, somado a um discurso final, propõe reflexões - já ambientais - sem delongas. Junto com cenas que abordam problemas familiares, com um timing para reflexão em meio a tanta ação, tornam o filme completo em todos os sentidos. É, vai ser difícil superá-lo, James. Axl Rose que o diga.



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sábado, 8 de maio de 2010

Contra, do Vampire Weekend

Imagine uma banda de meninos novinhos e nerdzinhos (todos eles são formados na Universidade de Columbia) que se cansaram dos padrões da música e resolveram misturar tudo, formando uma banda que tocaria para pessoas novinhas e nerdzinhas que estão cansados dos atuais padrões musicais.

Esse é o Vampire Weekend, uma banda que mistura de tudo um pouco, de percurssão africana, a sintetizadores, com solos de guitarra com uma voz quando quer suave, quando quer aguda, do vocalista e gênio criativo Ezra Koenig. Formada em 2006, o já haviam ganhado esses mesmos nerdzinhos com vários blogs espalhados pela rede. E hoje alcançam o grande público (se é que se pode pensar que o grande público gosta de sintetizadores e percurssões numa mesma música) com o novo álbum, Contra.

Caíram na graça dos críticos, caíram na graça do público, e se tornaram mais uma banda indie que ganha o mundo pop. O álbum não tem muita ousadia, na essência é muito parecido com o primeiro, que leva o nome da banda, mas arremata uma ou duas surpresas. A guitarra e a bateria ganham peso incrível, o que o difere um pouco do primeiro CD. Em suma, mais uma master piece do quarteto nova-iorquino. Talvez o fato de que eles estejam mais pop explica a aparição de um Jonas Brothers e do ator Jake Gyllenhaal no ultimo clipe, da notável música "Giving Up The Gun". (clique para ver o clipe).

Essa música, na minha modesta opinião como uma das nerdzinhas que foi conquistada pela banda logo em seus primórdios, sintetiza o que a mesma tenta passar nesse novo álbum. Primeiro porque a bateria mostra como vem mais forte nesse novo álbum, assim como as guitarras (mesmo nada sendo comparado com a música "Cousins" , onde ouvimos a guitarra plenamente presente), juntamente com as percurssões e os sintetizadores. O baixo dá um ritmo diferente para a música e a voz de Ezra aparece de forma suave. Uma junção quase que perfeita de todos os elementos que a banda costuma usar. Outra música digna de ser ouvida, que chega até a acrescentar novos elementos (como violinos), é "Taxi Cab". Parece incrível, mas você se sente dentro de um taxi com essa faixa. Espero que essa fosse a intenção.

Ganhando as graças do público e da crítica ou não, o Vampire Weekend continua inovando em seu novo álbum como inovou no primeiro. Suas referências diferenciam da banda em ritmo e letra, e é impossível não notar a diferença deles em comparação com as demais bandas da atualidade, que soam tão iguais umas as outras. Em suma, ouvir o CD novo do Vampire Weekend é mais ou menos como colocar uma banda de rock com temas nova-iorquinos no meio de um ritual de uma tribo Africana.

RECOMENDAÇÃO
Como hoje é sábado e muitas pessoas devem sair por ai, fica a dica para não ouvir Contra antes de sair. Você vai querer ficar em casa ouvindo-o e tomando chocolate quente ao invés disso.

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quinta-feira, 6 de maio de 2010

O jazz pós-moderno de Christian Scott

fotos por Markus Lackinger e Víctor Alonso, respectivamente

Sejamos bem honestos: desde 1970, praticamente, o jazz foi relegado à condição de peça de museu, estudado em conservatórios e apreciado somente por uma minoria de intelectuais. Responda rápido: quando foi a última vez que você ouviu uma gravação de jazz que não fosse tocada por Miles Davis ou John Coltrane, que não fosse “Take Five” (se você não sabe de que música eu estou falando, abra o link. Você vai perceber que você sabe de que música eu estou falando.) e que – por favor, diga que não – não tenha sido tocada na trilha sonora do Jô Soares? Pode até ser que isso se deva à indústria cultural e o esclarecimento como mistificação das massas ou outro desses conceitos impossíveis de se entender propagados por Adorno, Horkheimer e companhia, mas é fato que os próprios músicos não se esforçaram muito para fugir disso. Com raríssimas exceções, o jazz de hoje ou é o mesmo jazz que se tocava em 70, ou mudou muito pouco. E eis que nesse clima de água parada surge Christian Scott, um jovem de 27 anos vestindo roupas Dior, jeans Comme des Garçons e óculos Rayban, empunhando um trompete entortado e tirando dele um som que é mais ar do que som: um autêntico jazzman do século XXI.

Não me entenda mal. A música de Scott não é daquelas experimentações pseudo-moderninhas, “vamos misturar Louis Armstrong, mambo e psy-trance e ver no que dá” kind of thing. Longe disso. Antes de soar experimental, ele soa verdadeiro. Entenda: muitos dos artistas de jazz de agora isolam-se na tradição. Inspiram seu som em Sonny Rollins, tomam emprestados licks de Charlie Parker, compõem à maneira de Duke Ellington... no final, o que sobra é a versão musical de carne moída à fantasia. O que pode ser legal em certas ocasiões, mas certamente não tem individualidade. Aliás, esse problema não está restrito ao jazz: a fronteira entre “ser influenciado por” e “copiar descaradamente”, mesmo no rock e na MPB, é extremamente tênue. No caso de Scott... bem, talvez a questão seja mais complicada.

Quase sempre é idiota descrever música com palavras, pelo simples motivo de que toda canção encapsula muito mais sentimento do que é possível escrever. Afinal, se algum disco pudesse ser resumido a um texto, ele teria sido escrito e não tocado. Terei de apelar para isso agora, entretanto, para que vocês, queridos leitores que provavelmente não desejariam interromper a leitura do texto para ouvir um exemplo em mp3 ou no Youtube, entendam o meu ponto:

MAIS:

- A história de Christian é praticamente um clichê jazzístico: nascido em New Orleans, ele aprendeu a tocar com seu tio Donald Harrison, um trompetista que foi membro do conjunto de Art Blakey, os Jazz Messengers, durante a década de 80.

- O trompetista usa uma técnica de sopro não-usual: seu som é extremamente areado e sem vibrato. Segundo ele, é uma maneira de imitar a voz com que sua mãe cantava canções para ele, quando bebê.

- Seu trompete é especialmente fabricado: a boquilha é mais ampla, para facilitar a entrada de ar, e o bell (a ponta, de onde sai o ar) é elevada para que o músico consiga ver a platéia enquanto toca. Além disso, o músico apelidou-o "Katrina".

- O último disco de Scott, Yesterday You Said Tomorrow é um ótimo modo de começar a ouvi-lo, e uma ótima música para servir de introdução é sua versão da composição de Thom Yorke, "The Eraser".

- Scott tocará no Bridgestone Jazz Festival, em São Paulo, na quarta-feira, dia 19 de Maio. Clique aqui para comprar ingressos.

A primeira música de seu mais novo álbum (Yesterday You Said Tomorrow, lançado no começo desse ano como uma homenagem à década de 60) chama-se “K.K.P.D.” e abre ao som de uma guitarra tendo suas cordas acariciadas de uma maneira lenta e preguiçosa. Alguns segundos mais tarde, entra a bateria: frenética, caótica e com um número impressionante de baquetadas por segundo. Após um minuto em que as duas vozes interagem e exploram esse contraste, a guitarra passa a tocar dois acordes por compasso e a bateria se estabiliza numa frase baseada num ritmo ditado pelas duas caixas. E aí entra o trompete.

Certo, vamos voltar para essa frase da bateria. Isole-a dos outros instrumentos. Tire os pratos. Aumente o volume dos baixos e diminua o dos agudos. Pronto, você tem uma batida de hip-hop. Não que o baterista tenha pensado nisso enquanto tocava – aliás, é quase impossível imaginar a relação quando o grupo inteiro está tocando. Mas está aí: Christian Scott a dois passos de 50 Cent. Certo, talvez não a dois passos. Nem a uns cinqüenta metros. Mas vocês entendem a relação. A questão é que, em contexto, não soa como hip-hop. Também não soa como o jazz que todo mundo está acostumado a ouvir. Soa novo. E principalmente, soa honesto.

Na verdade, a genialidade não está em parecer hip-hop. Para falar a verdade, eu duvido até que essa semelhança tenha sido consciente. A questão é que, ao contrário da maioria dos seus contemporâneos, Scott não finge que ainda é a era Kennedy nem força sua música a parecer moderna: ela sai moderna naturalmente, exatamente como deveria sair de um músico que nasceu em 1983. O trompetista já foi chamado de “o Deus do estilo jovem de jazz”. Sinceramente, eu acho que ainda é cedo para fazer uma afirmação como essas. Ainda assim, é fato que ele fez mais do que qualquer outro para estabelecer um jazz que realmente pertença ao século XXI. Como disse em uma entrevista: “Se há alguém dizendo: ‘bom, isso é o que há e tudo que vem depois é lixo’, eu acho que também deve haver alguém do outro lado desse punho dizendo: ‘não, o que nós fazemos não é lixo. E nós vamos lutar contra vocês. E nós vamos ganhar.’”

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terça-feira, 4 de maio de 2010

Um Tratado Sobre Amor e Sexo Nos Dias de Hoje: Tom Bloch 2, da Tom Bloch

Esta resenha parte de dois pressupostos. Primeiro: que você não ouviu nem sequer ouviu falar deste disco. Segundo: que isso é um pecado - e, embora não seja culpa sua, ele é muito menor que os cometidos pelas personagens das canções. Tom Bloch 2, da Tom Bloch, é, sem dúvida, um dos discos mais bem concebidos no aspecto poético já feitos no Brasil sobre o amor, o sexo, seus vícios e conseqüências morais e psicológicas.

Quem sabe o ditado possa explicar:"filho de peixe, peixinho é":as letras e os vocais aqui ficam a cargo de Pedro Veríssimo, filho de Luís Fernando e neto de Erico - a banda ainda conta com Iuri Freiberger na bateria e programações. No primeiro disco auto-intitulado, a dupla já contava com grandes canções, como "Nessa Casa" e "Pela Ciência". Em "O Amor (Zero Sobrevivente)" (clique para ver o clipe), já se anunciava o caminho por onde as nove faixas desse Tom Bloch 2 andariam: um tratado, ainda que informal, dos relacionamentos em tempos modernos.

O mundo desse disco é um mundo marcado por mentiras e ilusões, submissões e vergonhas. Se na cara estampa-se o fingimento diante de uma situação oportuna ("A Invenção do Amor"), na coroa se mostra o ridículo de quem aceita se submeter a uma mentira por acreditar que ela é melhor que a solidão ("Por Favor Mente"). No meio do vendaval, aparece uma frágil chance de redenção, talvez a única, em "Imitação da Vida": se a casa de paredes falsas cair, de acordo com a letra, "fica exposto o homem/e o coração bate outra vez".

"Situação de Dança" é a exibição do pânico diante da desengonçada ("Se dois pra lá/eu sempre do lado errado") ocasião de baile para conquistar o outro - num ritual de conquista um tanto quanto acéfalo e superficial ("Mesmo versado no controle da mente/eu posso tentar mesmo que beire o indecente"). "Entre Nós Dois" é quase uma seqüência da anterior: dá pra achar uma crítica à vulgarização do sexo ("Você perto de mim, mesmo longe de mim") e à promiscuidade ("Entre nós dois e mais dois é uma festa") - mas é fácil perceber que algo errado vai acontecer ("Entre nós dois tinha que ser assim").

A banda insiste novamente na questão de mostrar dois pontos de vista em "A Dúvida" e "Vendetta" - a primeira trata de como encarar a suspeita de estar sendo traído ("Ou eu rasgo a tua foto e eu sigo ou eu não rasgo e cedo aos gritos de 'pula!'."). A segunda é, ainda que por vias tortas, uma explicação de porque se consumou o adultério. E se ainda resta algo a ser dito, que seja agora ou que este que vos fala cale-se para sempre: "O Refém" é uma das baladas mais bonitas do rock brasileiro - nota pessoal: já chorei muito ouvindo essa música - , na qual Pedro Veríssimo compara o amor a um seqüestro - onde muitas vezes o criminoso também é vítima ("Você fugiu, eu fiquei preso").

Já que estamos falando de crimes, crime mesmo foi Tom Bloch 2 não ter sido bem divulgado. Mas não querendo incorrer no clichê "pobrezinho do artista independente que não consegue espaço na mídia", cabe a mim apenas dizer: procure de algum jeito este disco. E ouça no último volume - a menos que você esteja pensando seriamente em cortar seus pulsos.

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sábado, 1 de maio de 2010

Esse Você Precisa Ouvir: Transformer, de Lou Reed

Ouvir música antiga é uma coisa fácil, de gente acomodada, quase. Eu posso dizer isso porque é praticamente só isso que eu faço há muitos anos. É tão mais confortável ouvir algo consagrado, histórico e importante mesmo que pouco conhecido, do que algo novo... Assim eu nunca estarei perdendo tempo com algo ruim e esquecível. Você pode até não gostar de algo dito clássico, como este ao lado, meu querido Transformer (1972) do Lou Reed, mas sabe que é relevante porque ele pertence a um cânone. Não é difícil descobrir essas obras. Por outro lado, o difícil (e o interessante) é perceber nelas as manifestações de grandiosidade, das óbvias às sutis.

Quando digo cânone, estou falando de coisas como o Velvet Underground, ex-banda de Lou Reed e outros figurões como John Cale. É importante ter em mente que o Velvet não “era” o Lou Reed; a sua carreira solo não tem muito a ver com a banda. É o caso do seu primeiro disco solo Lou Reed, de ‘72. Porém, isso não se aplica ao Transformer, lançado poucos meses depois.

Não que nesse álbum se expresse aquilo que recebeu o nome de art rock; as performances e som experimentais, diferentes e convenhamos, de certa forma pretensiosos do Velvet, que estavam estreitamente relacionados ao apoio que Andy Warhol dava à banda. Transformer não carrega essas características do Velvet, e sim o breve período em que ele existiu. Ele conta histórias.

Há quem diga que a Factory, o estúdio de Warhol, era algo parecido com o começo de O Homem Elefante, um verdadeiro freak show. Talvez fosse, mas e daí. “Walk on the Wild Side”, por exemplo, cita várias freqüentadoras e estrelas da Factory, como Holly Woodlawn, Candy Darling, Jackie Curtis. Todas nascidas homens. Pra mim, é aí que está a importância do Transformer.

Lou Reed escreveu verdadeira poesia sobre as pessoas que ele conhecia e o que ele via sem censuras, nos dois sentidos: sem julgamentos, sem omissões. Em razão disso, é de se esperar que o disco fosse um fracasso comercial como foi o Velvet, certo? Não foi. O produtor e um dos backing vocals do Transformer foi David Bowie, na época conhecido como Ziggy Stardust e evidentemente grande admirador do trabalho de Lou Reed. Ou seja, tocava no rádio uma música que dizia “But she never lost her head/ Even when she was giving head” e todo mundo adorava. Para evitar que você jogue no Google e leve um susto: “Give head” é gíria de fazer sexo oral em alguém. Sendo gíria, isso também significa que em muitos lugares, ninguém entendia direito do que ele estava falando.

O que leva às tais “manifestações de grandiosidade” e a dificuldade (ou não) de compreendê-las. Maioria das músicas do Transformer trata dos personagens daquele ambiente boêmio, sexy, estranho da Factory e afins. As outras, sobre amor, mas um amor com toques de perversidade, como “Satellite of Love”. Eu sinceramente não acho que seja necessário saber o que “give head” significa para notar esses traços; Lou Reed tem um jeito de falar, pronunciando as palavras com cuidado, de um jeito meio sussurrado, que resultaria em erotismo mesmo se ele não estivesse falando dessas coisas.

É inevitável ficar decepcionada quando vejo algo como alguém dizendo que “Make Up”, música cujo refrão em tradução livre é “Agora, nós estamos saindo/ Saindo dos nossos armários/ Pelas ruas/ É, nós estamos saindo”, fala simplesmente sobre uma garota vaidosa. Parece um desperdício. Porém, essa é mais uma beleza do Transformer: você não precisa entender pra se comover. É música de primeira linha. O fim de “Satellite of Love”, quando o Bowie começa a subir as notas, é de arrepiar, é incrível. Mas uma vez que você percebe o que está sendo dito e a relevância desse conteúdo, o significado ganha proporções muito maiores. É isso que faz uma obra valer para sempre.

(A segunda foto é a contra-capa do cd; só pra ilustrar um pouco mais isso do "trans". O cara se chama Ernie Thormahlen e isso na jeans dele é uma banana. Referência, talvez?)

Voltando nisso da poesia, aqui você pode ver Lou Reed lendo parte de "Andy's Chest", relacionada ao atentado de Valerie Solanis contra Andy Warhol. Só que esse não tem a marca verde bacana que o vídeo que eu editei tem. Bom, "Hangin' Round" sem música, "Hangin' Round" com música:








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Em São Paulo: a exposição "Andy Warhol, Mr. America", na Estação Pinacoteca (e não na Pinacoteca do Estado) vai até 23 de Maio. Muito boa.


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