Historicamente o objeto artístico se configurou como uma porta de acesso ao mundo. Mais do que fatos ou relatos, que se valem pelo distanciamento, a obra de arte tem uma capacidade especial de falar sobre o mundo a que pertence justamente por ser fruto da percepção do sujeito que o representa. Dessa forma, negocia-se com a sensibilidade estética do artista, com a percepção do sujeito frente ao mundo e com a tradição teórica e artística que os precede. O mundo moderno, contudo, coloca uma série de obstáculos ao esclarecimento, causando mudanças estruturais nas formas de produção artística.
A modernidade é marcada pela maturação do processo de capitalização, e conseqüentemente da estrutura ideológica. Com isso, altera-se não apenas o mundo em que o sujeito vive, mas sua própria percepção frente a ele. A resposta artística a esse processo tem que ser radical: uma vez que a estrutura ideológica impede o acesso do sujeito ao mundo, cabe à obra de arte denunciar a ação da ideologia – o que se torna cada vez mais difícil, já que a mesma ideologia que aliena o sujeito incorpora as manifestações artísticas, esvaziando-as de conteúdo crítico. Muitas vezes o que se pretende arte acaba mais ratificando a ideologia do que a denunciando. Ainda assim, é possível identificar ao longo da história moderna uma série de movimentos, manifestos e produções que, em maior ou menor grau, são capazes de falar algo de genuíno sobre o mundo.
A história da arte reserva um papel especial à pintura, que foi o pilar da produção artística por muitos séculos. Mas o progresso técnico, ainda que esteja a favor da ideologia, trouxe consigo novas possibilidades de produção artística. A fotografia e o cinema são alguns exemplos das novas formas exclusivas do mundo moderno. É verdade que o mercado rapidamente encontrou nessas formas estéticas um poderoso veículo de mercadorias, mas isso não as impediu de funcionarem também veículos de contestação. Entre essas novas formas estéticas modernas, contudo, existe uma em especial que não é produto do progresso técnico, mas que sofreu fortes implicações em razão dele.
Os primórdios do capitalismo se fundamentaram na troca de três tipos de mercadoria: estimulantes e guloseimas, tecidos, e bens militares. Nesse momento, a indumentária já possuía uma forte ligação com o que se tornaria material ideológico. O vestuário tinha como função social a diferenciação, primordialmente entre a nobreza e a plebe. A conclusão a que esse fato aponta, por sua vez, só é consolidada no capitalismo industrial, comn o progresso técnico. A segmentação da mercadoria têxtil é a responsável pelo surgimento da moda, que marca o encontro definitivo entre a indumentária e a ideologia.
A mercadoria têxtil possui um ciclo de vida muito desenvolvido e a estrutura mercadológica da moda serve como exemplo da estrutura do capital. As coleções sazonais têm como princípio a constante reposição do objeto de consumo, produzindo estímulo de compra. A segmentação atua de acordo com a ideologia, criando a ilusão de individualidade. A estética da moda recorre à tecnocracia da sensualidade, gerando imagens técnica e artificialmente produzidas com finalidade de gerar fascínio estético. O produto cultural segmentado é a materialização do fetichismo da mercadoria.
Mas se a moda está tão cooptada, por que discutir sua capacidade de produção artística? A resposta está na premissa da pergunta. É exatamente pelo fato de ela estar tão intimamente ligada à estrutura mercadológica que nela reside um potencial gigantesco. O fato de estar a serviço do capital de forma tão devota potencializa a capacidade de diálogo de eventuais manifestações artísticas. O mesmo ocorreu com o cinema, durante o século XX. Por um lado ele está fortemente ligado a uma complexa estrutura de mercado, que tem origem na produção cinematográfica hollywoodiana. Por outro, é ele que se elege para veicular as mensagens de contestação da segunda metade do século, tal como a Nouvelle Vague ou o Dogma 95, nascendo desse processo ocasionais obras de arte.
Não se deve ignorar a dificuldade da produção artística na moda. O cinema conquistou ao longo do século seu papel como veículo de oposição, a moda não. E se mesmo as eventuais produções que se pretendem artísticas no cinema são em sua maioria alienadas, atuando em favor da ideologia, é fácil de imaginar o quão alienadas seriam as tentativas de produção artística na moda. Isso não deixa de significar que reivindicariam à moda um espaço para contestação até então inexistente. O que nos resta pensar é se ainda há espaço na moda para esse tipo de produção, ou se a estrutura da moda está demasiadamente madura para esse tipo de oposição.
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Como exemplo de tentativas, ainda que insuficientes, de produção artística na moda, ficam os trabalhos de Jun Nakao e Hussein Chalayan:
AfterWords - Hussein Chalayan
A Costura do Invisível - Jun Nakao
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Para efeitos retóricos, ignorem as manipulações audiovisuais presentes no vídeos.
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