quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Treme: a Verdadeira New Orleans

É impressionante como americanos adoram símbolos nacionais. Como se não bastasse a Estátua da Liberdade, o x-burger gorduroso e o dedo em riste de Tio Sam apontando para você, foi necessário também retratar New Orleans como a cidade americana por excelência, romântica, boêmia, e transbordando jazz. E, em pouco tempo, a verdadeira metrópole ficou para trás, esquecida atrás de uma cortina de tráfico de drogas, baixo nível de educação e violência policial.

Em 2005, o Furacão Katrina atacou. Números oficiais indicam que 1464 pessoas foram mortas pela tempestade, 11722 pessoas desapareceram e 135 continuam desparecidas; corpos boiavam nas ruas inundadas e quase todas as estradas que davam acesso à metrópole tornaram-se inutilizáveis; mas, principalmente, o furacão destruiu duas cidades: a New Orleans verdadeira, devastada pelas falhas em seu sistema de diques, e a New Orleans do imaginário americano, esmagada pela terrível verdade narrada nos noticiários de todo o mundo.

Como se retrata, então, a complexidade da verdadeira New Orleans? A série Treme, de David Simon (o mesmo criador de The Wire) tenta resolver o problema partindo não de um ponto de vista, mas de vários. Justamente por isso, é impossível enquadrá-la em qualquer gênero. New Orleans é uma cidade fragmentada em histórias tão trágicas quanto a de LaDonna Batiste-Williams, dona de bar cujo irmão desapareceu após o furacão, e tão cômicas quanto a do DJ e guitarrista Davis McAlary, que, num delírio movido a maconha, decide se candidatar ao Conselho da Cidade e gravar e divulgar uma canção de campanha contando com vários dos maiores músicos da cidade; tão cotidianas quanto a de Antoine Batiste, trombonista mulherengo tentando ganhar a vida numa metrópole abandonada e tão irreverentes quanto a de Creighton Bernette, professor universitário que sublima sua repulsa pelas atitudes do governo americano postando vídeos raivosos no Youtube. Os personagens se entrançam numa teia que é, em momentos, tão romântica quanto a New Orleans dos filmes e tão negra quanto a New Orleans dos telejornais.

E talvez o que mais se beneficie disso tudo seja a trilha sonora. Após sapos cantantes e música cinematográfica, é um alívio ouvir novamente música autêntica, sem intermediários ou qualquer “dumbing it up” para o público. Entre os convidados especiais estão Dr. John, Allan Touissant e até mesmo Elvis Costello. Mas, mais do que simplesmente boa música, toda a faixa musical de Treme funciona como uma personagem principal, tão acreditável e autêntica quanto qualquer um dos outros protagonistas.

A série, mais do que tudo, é uma carta de amor a New Orleans. Não somente à sua música, não somente à sua cultura, mas a toda a cidade: do voodoo como religião aos habitantes que ainda hoje não reencontraram seus familiares. Mas, também, é um registro vivo de seres humanos vivendo no limite da tragédia, lutando para sobreviver e para deixar sua marca. Dessa maneira, New Orleans é mais do que uma cidade, e Treme é mais do que um relato: é um testemunho da existência humana, com direito a todas suas mazelas e a todas seus desesperos, a todas suas paixões e a todas suas exigências. Tudo regado a muito jazz e uma pitada de gumbo.

Um comentário:

  1. "tão negra quanto a New Orleans dos telejornais" era pra ser ambíguo?

    E você podia ter avisado que era uma série no primeiro parágrafo.

    E gostei :D

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