domingo, 21 de novembro de 2010

As duas metades de Norah Jones

São tempos difíceis no cortiço de Catfish Row em Charleston, na Carolina do Sul, mas seus moradores, todos negros, fazem o máximo para tornar seu tempo lá agradável. Em um canto, os homens jogam dados e berram apostas que ecoam por toda a mansão. Do outro lado, Jasbo Brown entretém seus companheiros com um velho piano desafinado. No meio de toda a algazarra, Clara, uma jovem mãe, tenta inutilmente fazer seu bebê dormir. A um passo de desistir, ela começa a cantar uma canção de ninar, e de seus lábios deslizam os versos eternos: “Summertime/and the livin’ is easy/fish are jumpin’/and the cotton is high” . Naquele momento, sua voz é o que de mais materno se poderia imaginar, carinhosa, singela, acolhedora. Mas, ao mesmo tempo, ela carrega toda a tradição que a música negra carregava: uma música sensual, cantada nos prostíbulos de Nova Orleans e nos bares ruins do Harlem. A voz de Clara é também voz de femme fatale.

SETLIST:

- "I Wouldn't Need You"
- "Tell Yer Mama"
- "Light as a Feather"
- "Even Though"
- "Young Blood"
- "It's Gonna Be"
- "Chasing Pirates"
- "Come Away with Me"
- "The Long Way Home" (cover de Tom Waits)
- "Broken"
- "Cry Cry Cry" (cover de Johnny Cash)
- "Waiting"
- "Back to Manhattan"
- "Sinkin' Soon"
- "Carnival Town"
- "Don't Know Why" (com Jesse Harris)
- "Stuck"
- "Lonestar"

BIS ACÚSTICO:
- "Sunrise"
- "Creepin' In"
- "How Many Times Have You Broken My Heart"

A cena da ópera Porgy and Bess, de George Gershwin, tornou-se icônica. Apesar de ter recebido uma fria recepção inicial pelos críticos nova-iorquinos, a obra cresceu para ser reconhecida como uma das visões mais pungentes da vida dos negros americanos no início do século. Em “Summertime”, Gershwin – que não era negro, mas sim branco e judeu – conseguiu reproduzir a dicotomia que toda grande cantora de jazz carrega, essa instabilidade entre canção de ninar e canção de cabaret, entre gospel e blues, de Bessie Smith e Billie Holiday a Madeleine Peyroux. E em pouco tempo a música se tornou, nas palavras do crítico americano Alex Ross, “uma das melodias preferidas do século XX”.

A cantora Norah Jones tampouco é negra. Filha do famoso tocador de cítara Ravi Shankar, Jones se graduou em piano jazzístico pela University of North Texas e, em 2002, impressionou o mundo com seu álbum de estréia Come Away With Me, que transcende categorização numa mistura de jazz, country, soul e pop ligados por uma imensa camada inocência. O disco foi coberto de elogios por todos os lados: o prestigioso site Popmatters comparou-o ao poeta romano Horácio, a canção “Don’t Know Why” ganhou 3 prêmios Grammy e até mesmo músicos do cenário do jazz tradicional (Joe Lovano, por exemplo) expressaram publicamente sua admiração pelo álbum. Oito anos mais tarde, a pianista e cantora se apresentou em São Paulo, no Parque da Independência, em frente ao museu do Ipiranga, para um público de 18 mil paulistanos. E muita coisa mudou, aparentemente.

A turnê que o show integra tem como propósito divulgar o último disco de Jones, The Fall, de 2009, que recebeu duras críticas por se afastar do caráter jazzístico de seus trabalhos iniciais em favor de um estilo mais ligado ao rock alternativo e à música pop. Jacquire King, por exemplo, o produtor do álbum, havia trabalhado antes com Tom Waits e com as bandas Kings of Leon e Modest Mouse. Acabadas estavam a sutileza e a suavidade de Come Away With Me para dar lugar a guitarras distorcidas, sintetizadores e batidas hipnóticas e sensuais. Era de se esperar, portanto, que o show fosse claramente dividido em duas metades distintas: de um lado, apresentando suas canções clássicas, a Norah Jones de começo de carreira; do outro, com as músicas do novo disco, a Norah Jones crescidinha.

A verdade é que a cantora não sofreu uma transformação súbita entre 2002 e 2008. O show mostrou que a Norah Jones do passado e a Norah Jones do presente são só duas facetas da mesma Norah Jones que sempre estiveram presentes em sua voz, mas que foram diferentemente acentuadas em cada um de seus trabalhos. Mas ao ouvi-la cantar uma canção como “The Long Way Home”, de Tom Waits, a platéia do Parque da Independência, assim como a platéia de Porgy and Bess, há 70 anos atrás, deparou-se – não sem um toque de surpresa, é bom notar – tanto com a segurança de uma figura materna quanto com a sensualidade de uma cantora de cabaré. A Norah Jones que se apresentou em São Paulo, a Norah Jones verdadeira, que porta, sim, essas duas facetas e muito, muito mais, é uma grande cantora, na tradição de Bessie Smith, Billie Holiday e de Madeleine Peyroux. E, claro, da Clara de George Gershwin.

3 comentários:

  1. Parabéns pelo artigo. Boa introdução e a resenha sobre a Jones também ficou legal, concordo com você, ela só deu ênfase a outros tons, mas ainda assim ela continua transbordar sentimento.

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  2. Certíssimo!É um dos momentos mais sensíveis desta ópera Nora Jones sabe disso.

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  3. Oi, você já leu Gay Talese? Acredito que sim. Sua escrita é bastante similar à dele. Sim, isso é um elogio e tanto. Parabéns!


    Att,
    Jéssica Figueiredo

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