reclamou de como os CDs de jazz são apresentados nas lojas. Segundo ele, esse é um dos motivos por que tão pouca gente ouve música instrumental hoje em dia. Olhando por esse lado, talvez a ECM seja a maior culpada. Se não bastasse a própria disposição dos discos, que em geral ficam junto com os clássicos, atrás de uma parede em que só falta estar escrito “proibido para o proletariado”, os produtos da gravadora alemã seguem sempre o mesmo modelo: todo CD é devidamente agasalhado por uma cobertura de papelão reproduzindo a capa, minimalista, composta pelo nome do artista e do álbum escritos quase sempre em uma fonte criada especialmente para a ECM e uma imagem de algum artista do pódio da alta arte contemporânea. Por conta de todos esses caprichos, é raro encontrar alguma gravação que custe menos do que o módico valor de oitenta reais, o que os torna, obviamente, um produto de elite.
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Keith Jarrett – The Köln Concert
A partir de 73, o pianista iniciou uma série de concertos solo completamente improvisados. Este, gravado na Cologne Opera House, em Köln, na Alemanha, é o álbum de piano-solo mais vendido de todos os tempos. Um dos discos mais bonitos já lançados pela ECM.
Por mais que pareça só detalhes e frescuras, no fundo, tudo isso é somente um sintoma da proposta da gravadora. Fundada em 1969 por Manfred Eicher, um ex-engenheiro de som da Deutsche Grammophon (provavelmente o mais famoso selo de música erudita), a ECM pretendia ser o epicentro de um suposto “jazz europeu”. Enquanto o jazz americano mantinha-se em seu status de “quem precisa de músicas bonitas quando se pode ter músicas revolucionárias”, os discos do novo selo soavam, à primeira audição, menos vanguardistas (pelo menos de uma maneira óbvia) e mais atmosféricos, o que, previsivelmente, acarretou algumas conseqüências não muito agradáveis para a gravadora: em pouco tempo, ela passou a representar para o jazz avant-garde aproximadamente a mesma coisa que o McDonald’s representa para o comunismo.
Acontece que, assim como a grande maioria das disputas entre música pseudo-vanguardista e música pseudo-retrógrada, o conflito entre a ECM e o jazz avant-garde partia de alguns pressupostos mal discutidos. Afinal, assim como o “som atmosférico” pode significar algo como “oh, eu adoraria dormir ouvindo isso!”, também pode significar algo do tipo de “como uma música pode ao mesmo tempo soar e não soar tão inovadora?” e, tomando como base o calibre dos artistas da ECM, é óbvio que eles não pretendiam reproduzir essa primeira perspectiva. Até mesmo jazzistas de vanguarda perceberam isso: após certo tempo, alguns deles chegaram a gravar pelo selo europeu.
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Egberto Gismonti & Charlie Haden – In Montreal
Egberto Gismonti é um dos Beatles da música instrumental brasileira (junto com Hermeto Pascoal), mas ainda assim não consegue sobreviver gravando por selos brasileiros. Esta apresentação no festival de Montreal junto ao baixista americano de jazz Charlie Haden é uma das mais comoventes de sua carreira.
Seu público, entretanto, nem sempre partilhava dessa visão. Enquanto pequenas gravadoras como a Blue Note eram engolidas por multinacionais – ou simplesmente faliam – por depender somente dos audiófilos amantes de jazz, a ECM conseguiu pagar por suas caixinhas de papelão e direitos autorais de pintores e fotógrafos renomados porque, além de contar com uma camada de aficionados, contava também com uma camada bem maior de público que simplesmente precisava de música para ouvir enquanto lia seus romances, sentado numa poltrona de veludo. O que pode soar como hipocrisia, mas fez com que o selo prosperasse numa época de vacas magras para a música instrumental. Até porque essa coincidência de interesses foi somente isso: uma coincidência. O selo simplesmente teve a sorte de que o som favorecido por Manfred Eicher poderia ser interpretado dessa maneira mais – digamos – fútil.
A ECM não é um caso isolado e, muito menos, representa o que há de pior na indústria musical. Hoje em dia, tudo o que está ligado à música instrumental tem decaído mais e mais em termos de público; a diferença é que a gravadora alemã encontrou uma maneira de lidar com isso e sobreviver com relativa folga. A pergunta que devemos nos fazer agora é: há espaço para uma música instrumental contemporânea que exija certo grau de atenção e, ao mesmo tempo, continue popular, ou os selos de hoje estão somente encontrando maneiras de adiar o momento em que a situação se tornará insustentável?
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Jan Garbarek – Witchi-Tai-To
Mais tarde, Jan Garbarek passou a tender mais e mais em direção à New Age, mas em 74, seu som ainda era uma mescla de melodias escandinávias agradáveis às inovações do improviso do jazz de então. Um belíssimo álbum que ilustra perfeitamente o som ECM.
Não há uma resposta certa. Olhando para os números de hoje em dia, parece haver uma base de ouvintes dedicados que estão dispostos a sustentar toda essa imensa e ridiculamente cara estrutura: se as coisas continuarem nesse sentido, o jazz se tornará quase uma nova música erudita. O que é meio triste, considerando que ele nunca foi assim elitista. Mas, querendo ou não, conforme o tempo passa, nossos hábitos cada vez mais apontam nessa direção. Em nossa geração, é raro encontrar quem dedique a esse tipo de música a atenção que ela exige, ou mesmo que tenha o costume de ouvi-la por si só, e não como acompanhamento de outra atividade. Nesse movimento, é impossível apreciar as sutilezas de que esse tipo de música é feita.
Qualquer que seja o caminho que o jazz tome, é um conforto saber que sempre a luz da chama é mais intensa no último momento antes dela se apagar. No meio desse universo cada vez menos acessível, há um número surpreendente de artistas que têm tudo para reverter esse caminho. Seus esforços serão esquecidos? Só o tempo dirá. A nós, só resta esperar e torcer para que todos eles não tenham que continuar apelando para a apatia de seu público para conseguir sobreviver de sua música. E, por enquanto, continuar gastando os módicos 80 reais em discos da ECM.