quarta-feira, 31 de março de 2010

Richard Hell and the Voidoids, Destiny Street Repaired


Blank Generation é mais um dos grandes álbuns lançados em 1977, o ano em que o punk mostrou sua cara para o mundo. A faixa que deu nome ao disco é icônica ao ponto de servir de sinônimo para a primeira onda de artistas que propuseram fazer algo porque queriam, gostavam e tinham algo a dizer, ainda que não se enquadrassem nos padrões e gostos setentistas. “Down at the Rock and Roll Club” é um verdadeiro documento dessa efervescência. “Who Says?”, do niilismo. Esse também é o debut de Richard Hell finalmente liderando um grupo, o Richard Hell and the Voidoids. Até então, mesmo tendo personificado (e há quem diga, criado) o estilo e comportamento que mais tarde seriam chamados “punk”, Hell havia sido ofuscado por colegas no Television e no The Heartbreakers. Dessa vez todos os olhos estavam sobre ele.

Este não é mais um texto louvando Blank Generation.

É um texto sobre o recém lançado Destiny Street Repaired (selo Insound, Setembro de 2009).

Em 1982 o punk não era nenhuma novidade. Longe disso. Sid Vicious estava morto há três anos; o London Calling saiu mais ou menos na mesma época, 1979, ano que o Blondie conquistou a fama mundial com “Heart of Glass”. Os Ramones lançariam em 83 seu sétimo disco. Foi esse o contexto de Destiny Street, o negligenciado segundo álbum do Richard Hell and the Voidoids.

Destiny Street Repaired foi um projeto ousado, arriscado, meio estranho e felizmente bem-sucedido, embora haja controvérsias entre os extremistas. O disco foi literalmente regravado. Vocais, inclusive.

Vou poupar quem se deu o trabalho de chegar até aqui dos detalhes técnicos, até porque eu não sou nenhuma expert, mas o fato é que um Destiny Street remasterizado estava fora de questão já que os originais foram perdidos. Falta de profissionalismo da gravadora. A única opção seria regravar.

Em 1982 Richard Hell era um junkie de heroína. Segundo o próprio, ele estava tão debilitado pelo uso de drogas que simplesmente não tinha iniciativa ou preocupação em fazer um bom disco. Ainda segundo ele, a produção e os arranjos foram inapropriados, transformando canções simples e bem construídas em barulho de guitarras. O Repaired é então a tentativa de consertar tudo isso e ao ouvi-lo, não só a insatisfação de Hell faz sentido mas como o resultado da nova versão se mostra bem positivo.

Apesar de todos os problemas, o Destiny Street original não é ruim. Na verdade, é bem legal. E não, o Repaired não faria falta para o público. Afinal, o disco que atrai interesse não é o Destiny Street, é o Blank Generation, por todos aqueles motivos citados acima, e os dois são bem diferentes. Vale lembrar também que o original está esgotado há anos, ou seja, o Repaired é a única versão disponível.

Despindo-se dos julgamentos prévios, dá sim pra notar melhoras na nova versão. A parte instrumental das músicas nem se compara. Os vocais... Bem, em algumas faixas ficaram um pouco estranhos. "Going, going, gone", cover do Dylan, impecável no original, foi uma delas. Por outro lado, "Downtown at Dawn" e "I Can only give you everything" ficaram bem melhores. E a versão definitiva de "Time", uma das músicas mais marcantes que Hell já escreveu, continua sendo a dos Neon Boys. Mérito de Tom Verlaine.

A comparação entre as duas versões é inevitável, mas desnecessária. O Repaired não é melhor ou pior, ele é diferente. Ele não vai substituir o de 82, vai complementá-lo. As duas versões, junto com Blank Generation, formam um quadro bem completo da carreira musical de Richard Hell, refletindo também os altos e baixos de sua vida pessoal. Sem entrar em detalhes, no momento ele com certeza está num alto.

Flaubert reescrevia seus romances à exaustão e às vezes surge um DVD com o “director’s cut”, mas não se vê bandas refazendo seus trabalhos, mesmo que sejam realmente ruins. Isso que Richard Hell fez foi muito corajoso, embora mostre que mesmo tendo amadurecido muito dos anos setenta pra cá, ele continua não ligando muito para o que pensam dele; ele faz o que ele quer. E isso é muito punk. E só mais um dos vários motivos para conhecer o trabalho desse cara.

(Abaixo, umas observações, porque isso aqui ficou muito longo.)

Versão de 82:



OBS.:

  • O guitarrista original dos Voidoids, Robert Quine, cometeu suicídio em 2004. Eu queria falar isso no texto, mas não consegui abrir nenhuma brecha.
  • A capa original não é essa que eu coloquei, é essa. Ela foi modificada pelo artista plástico escocês Jim Lambie. Ficou melhorzinha, a outra estava péssima.
  • O Destiny Street original, como disse, está esgotado. O Repaired pode ser comprado direto pela gravadora Insound ou pelo site oficial do Hell.
  • Se você não quiser comprar nada, é fácil de baixar o Destiny Street por aí, mas o Repaired, não. Vale mais a pena baixar faixa por faixa nos Soulseek da vida do que ficar procurando.
  • "Mas quem era da Blank Generation?", você pergunta. Eu não sou fã de coletâneas, porém essa aqui é muito boa.



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segunda-feira, 29 de março de 2010

Franz Ferdinand: Revanche Contra a The Week

A noite estava quente porém um tanto quanto nublada, mas o que provavelmente deixava o publico de seis mil pessoas que lotaram (e esquentaram ainda mais) o Via Funchal na última terça, dia 23 de março, era a expectativa de ver um show digno do Franz Ferdinand que se apresentou para um publico limitado na The Week, no ano passado.

E foi o que tiveram. Com uma banda de abertura surpreendentemente boa (mas não boa o suficiente pois, como a própria vocalista cantou, “não há nada de novo”), os escoceses do Franz Ferdinand entraram no palco, ao som de "Bite Hard", com vinte minutos de atraso, que valeram o esforço com a extraordinária performace do grupo durante o show. Com uma tentativa de fazer uma pseudo rave/indie, a banda mostrou que sobram improvisos e animação, principalmente entre Kapranos e McCarthy, guitarristas da banda. Os fins apoteóticos da primeira e ultima parte do show tiveram espetáculos na baterias, na primeira vez com todos os integrantes da banda à frente do palco, e a ultima, o momento mais dançante da noite, com uma combinação de sintetizadores e solo de bateria matador do baterista Paul Thomson.

Juntando todos os sintetizadores, jogos de luzes e imagens psicodélicas no telão com a pouca ou quase nula distância que o Via Funchal oferece as pessoas que estão na pista, o show foi monumental, e digno de espera. Quem ficou magoado por não ter ido na The Week ano passado (500 ingressos que evaporaram como água), só teve a agradecer pela espera de alguns meses.

Cheio de hits, e com um show de uma hora e cinqüenta, o Franz mostrou que, assim como a canção que todo o público do Via Funchal cantou em conjunto: “This fire is out of controul, we are gonna burn this city”. E eles queimaram mesmo, sendo pelo calor a níveis sauna de dentro da casa do show, seja pela animação, que fez até papais presentes saírem do chão.

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Nove Motivos Para Ver 9

9 - Shane Acker (dir.) - 2009

Lançado há alguns meses (especificamente no dia 9/9/09 nos EUA) , fui assistir ontem a “9 – A Salvação” (por sinal, péssima tradução para o português, já que originalmente é somente o número). Já tinha algumas expectativas por causa de um dos produtores, de indicações de amigos e porque a Super (interessante) tinha publicado algo a respeito; enfim, fui ver já com bons olhos. A sorte foi que nem precisava disso, e te dou até uma lista do porquê você também deve apreciar o filme:

1. Em primeiro lugar, a história em si já é um atrativo, para mim pelo menos – adoro ficções futuristas-negativas barra pós-apocalípticas [ok, esse meu gosto é baseado em livros como 1984 e Admirável Mundo Novo e histórias afins]. Nesse caso, é uma realidade em que os seres inventados pelo diretor Shane Acker, uns bonecos humanóides, tentam sobreviver num ambiente desolador (emptiness) habitado também por “beasts”. Não é um filme infantil – em algumas cenas vem até um o/. Com um leve toque de magia na parte que aborda a alma, o filme mostra um futuro dos anos 20 e 30 que não aconteceu.

2. O fato de ser uma animação é encantador. Certamente não porque as coisas ficam “fofinhas” (esse filme passa longe disso), mas porque o campo de possibilidade cinematográficas se expande de modo considerável. Vários cenários são de levantar as sobrancelhas mesmo, principalmente porque o ponto de vista dos personagens é de perto do solo. Dá até vontade de chegar na tela e sentir a textura do material com que é feito 9 e os outros. Das máquinas é possível observar características felinas, ursinas (?) e de vários animais, ao mesmo tempo em que o ferro é preponderante e adquire um aspecto mais ameaçador. A fotografia e as cores, por fim, fazem de cada segundo um quadro.

3. Tem um toque de Tim Burton. Quero dizer, meu overthetop dele ainda é Big Fish, mas só por ele ser um dos produtores já faz um “me olha, tia”.

4. Por mais o.O que possa parecer, em alguns momentos eu reparava mais em detalhes do que no curso geral dos acontecimentos, sem estar explícito na fala (pouca) do filme. Isso me deixava mais curiosa, porque a qualquer momento poderia aparecer um aspecto pequenino, porém marcante. Do tipo de reparar nas diferenças mínimas entre os puppets (adivinha quantos são no total?), numas ironias escondidas, ou no ímã, a droga do número 8. E aposto que se eu reassistir ao filme, vou achar mais, e continuar me deliciando com o esmero com que foi feito – afinal, foram quatro anos e meio!

5. A moral da história deixa a desejar, o que eu incluiria nos pontos negativos (sei lá, não esperava ver frases clichezinhas). Mesmo assim, você se pega refletindo em algumas partes qual ação você tomaria, se aquilo foi estúpido ou não, quem você mais admiriria, e o fim se expõe bonitamente.

6. Dá para ser visto com qualquer idade, com qualquer pessoa. É claro que vai adquirir diferentes significados para cada um (de certo uma criança não associaria a cidade destroçada com a Revolução Industrial ou o símbolo da ditadura vigente até pouco com a suástica), mas por isso mesmo a película torna-se rica em sentidos.

7. Dura meros setenta e tantos minutos. Isso quer dizer que, se você não curtir, será pouco; e se você gostar, não tem encheção de linguiça e não cansa. Dá até pra colocar em Ipods e cia, pra ver no ônibus xD

8. O dvd vem repleto de extras indispensáveis para quem gosta dos behind the scenes. Conhecemos os dubladores (entre eles Elijah Wood, mais conhecido como Frodo e um velho com a voz mais legal), o tal Shane Acker (a mente genial que criou a história), o curta-metragem embrião do filme (é mudo – quer dizer, sem falas – e dá pra perceber a evolução para o longa), a produção e os sketches do processo para o 3D (inclusive como os designers precisavam atuar para melhor imaginar as cenas!) e muito mais material que sacia parte da curiosidade de quem o assistiu.

9. Olha quem mais concorda comigo: http://www.filminfocus.com/focusfeatures/film/9/reviews. Dá pra ter uma idéia melhor sobre o geral e perspectivas que eu não tive, mas sugiro simplesmente alugar o filme, deitar no sofá e ver primeiro. Enjoy!

PS: Meus preferidos são o 3 e o 4.


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Show: Thiago Pethit no Sesc Vila Mariana

Na entrada do Sesc Vila Mariana, havia um cartaz na porta, com uma inscrição do tipo “Thiago Pethit - a nova sensação do indie pop”. Porém, ao contrário do palco indie no Festival Planeta Terra do ano passado, a média de idade do público era superior a 25 anos. Logo, nota-se que se trata de um músico, no mínimo, diferenciado.

O show ocorreu no teatro do Sesc e, como numa peça, a platéia estava sentada, prestes a assistir a um espetáculo e (quase) impessoal. Digo quase, pois o clima foi quebrado assim que Thiago entrou no palco. Contudo, o ambiente estava adequado a um lançamento de CD, onde as pessoas normalmente nunca ouviram metade das músicas. "Nightwalker", por exemplo, é uma faixa que tem grande potencial para participação do público em apresentações futuras.

O título do CD, Berlim, Texas, faz referência a movimentos contemporâneos no começo do século XX, ao Vaudeville dos saloons do Texas e aos shows em cabarés alemães e franceses durante a Belle Époque. Um telão que ora mostrava o show sob uma perspectiva de câmera caseira, ora mostrava uma filmagem simples de um giz e uma lousa, dava um toque especial.

Thiago Pethit fez parte do encontro musical que ocorreu ano passado chamado “Novos Paulistas” com Dudu Tsuda, Tatá Aeroplano, Tulipa Ruiz e Tiê. Ele tem duas faixas com parceria já lançadas e que ajudaram em sua publicidade. Porém, com a finalização da gravação do primeiro álbum - feita por Yury Kalil do Cidadão Instigado em 2009 - e sua divulgação, evidencia-se o fato de que Pethit anda muito bem com os próprios pés.

Tanto que a participação de Hélio Flanders (Vanguart) em “Forasteiro” não foi um dos pontos altos do show. Formado em teatro, ele demonstra segurança no palco. Uma prova disso foram suas dancinhas - discretas, porém elegantes - nas partes instrumentais de suas músicas. As letras seguem o mesmo princípio, falam sobre cultura urbana, mas com linguagem simples. O verdadeiro ponto alto foi o surpreendente cover de "Bad Romance" à la Jamie Cullum - com Pethit sozinho no piano - declarando antes que 'goste ou não' a música será tocada. Ou em "White Hat", onde as dancinhas discretas partiram do público.

As duas músicas em francês no repertório, somadas ao clarinete, acordeon e à percussão crescente em algumas canções remeteram à proposta inicial. O álbum inteiro foi tocado, com direito a bis de Mapa-Múndi e mesmo assim o espetáculo durou pouco menos de uma hora. Mas uma hora que deixou o publico - que já não sabia se era tango, indie, folk - mais que satisfeito.


PS: Pra quem se interessou, terão mais 3 shows no Studio SP nos dias 7, 14 e 21 de Abril e um no Circo Voador no Rio, no dia 30.
Fotos por Luisa Morégola da Costa Neves.

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quarta-feira, 24 de março de 2010

Caligrafia, do Ludov: Finesse

O Ludov é uma banda paulistana (embora alguns de seus membros sejam de Brasília, a banda considera São Paulo sua casa) já com anos de estrada e reconhecimento nacional. Ficaram conhecidos há alguns anos, com o lançamento do EP Dois A Rodar e "Princesa", videoclipe que ganhou o prêmio de melhor clipe independente no VMB, da MTV, em 2004. Esse impulso fez com que gravassem com a Deck Disc (que lançou Pitty e Cachorro Grande) seu primeiro álbum, O Exercício das Pequenas Coisas (2005).

Embora tenha tido essa experiência, o Ludov voltou a gravar independentemente. Apesar de hoje não ter tanta visibilidade quanto naquela época, seus trabalhos posteriores mostram uma banda cada vez mais madura, e com músicos na mais pura sintonia. É mais um exemplo de que qualidade independe de visibilidade.
Seu disco mais recente, Caligrafia (2009), é, em poucas palavras, renovador. Os integrantes passaram um mês em um sítio no interior de São Paulo para trabalhar no álbum novo, desde a composição até a gravação. O resultado é algo diferente do que se tem visto: o mesmo Ludov de "Kriptonita" e "Dois a Rodar", mas mais próximo da MPB, com arranjos e ritmos interessantes. Alguns até diriam que o disco não tem muito a cara da banda, mas independentemente de qual vai ser o caminho que a banda vai seguir de agora em diante, vale a pena acompanhar de perto.
O divertido de Caligrafia é como ele muda de clima sem perder concisão. Da triste "Não Me Poupe" à dançante "Vinte Por Cento" e passando pela engraçadinha "Magnética", é uma mistura de influências, muito bem orquestradas por Habacuque Lima e por Mauro Motoki (aliás, inspirado e fofo como sempre). Sem contar, é claro, a voz da Vanessa Krongold que dá vida às músicas. Não que as músicas cantadas pelo Habacuque ("Madeira Naval", "Paris, Texas") e pelo Mauro ("O Seu Show É Só Pra Mim") não sejam boas, mas a Vanessa já virou “a voz do Ludov”. É gratificante ouvir alguém que canta tão bem quanto ela em tempos em que cantar é muitas vezes visto como algo secundário.

Falando mais especificamente das músicas, 7 delas só entraram na versão digital do disco, totalizando 19 faixas. Não as ignore só porque são faixas bônus! Poucas músicas têm uma melodia tão bonita quanto "Antiquário", uma das faixas bônus. Mas o gostoso mesmo é ir descobrindo cada uma dessas músicas aos poucos, deixando que conquiste os sentidos à sua maneira, seja pelas guitarras em "Vinte Por Cento", pela dancinha no clipe de "Reprise", pelos 'Uh Ah's em "Luta Livre"... Quanto às músicas ao vivo, perdem em qualidade para as gravações. Com exceção de algumas canções, as músicas em geral perderam muito da riqueza que tinham nas versões de estúdio. Uma dessas exceções é "Não Me Poupe" – ao vivo, Vanessa faz dela mais melancólica, mais tocante, mais bela. Como diria Mauro, ‘finesse’!

(baixe o album gratuitamente no site da banda)

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terça-feira, 23 de março de 2010

Jazz 101: New Standards

(na foto - acima, Nirvana; abaixo, The Bad Plus: "Smells Like Teen Spirit" no século XXI)

A partir dos anos 90, músicos como Herbie Hancock e Brad Mehldau quebraram de maneira definitiva um tabu que havia atormentado o jazz por décadas. Desde o pós-bop, ao escolher as músicas que pretendia gravar, um intérprete tinha somente duas escolhas: compor algo novo especificamente para o disco ou escolher um standard, isto é, uma das canções daquela imensa coleção de músicas que o tempo consagrou como clássicos jazzísticos. Em 96, Hancock gravou o álbum The New Standard, no qual interpretava 9 faixas retiradas da música pop contemporânea, numa seleção que incluía composições de Lennon & McCartney, Kurt Cobain e Paul Simon executadas por uma banda composta por Michael Brecker, John Scofield, Dave Holland e Jack DeJohnette, todos artistas de imenso renome. A partir daí, as portas se abriram.

Seria falso afirmar que nunca antes nenhum músico tentara reaproximar o jazz do pop – em 1963, por exemplo, o guitarrista Grant Green gravou uma belíssima versão do clássico dos Beatles “I Want to Hold Your Hand” – mas esses esforços foram, em geral, só isto: tentativas isoladas. Hancock, ao contrário, inspirou uma multidão de seguidores: dois anos mais tarde, o saxofonista Joshua Redman gravou em seu álbum Timeless Tales (For Changing Times) versões de composições de Joni Mitchell, Bob Dylan, Prince e Stevie Wonder; em 2001, o polêmico grupo The Bad Plus gravou seu primeiro álbum (“O Bad Plus é um trio de jazz influenciado por pop e rock ou um power trio que gosta de tocar jazz?”, perguntou um crítico); Em 2004, o pianista Brad Mehldau registrou no disco Live in Tokyo uma versão de 19 minutos da épica suíte do rock alternativo “Paranoid Android”, do Radiohead, e em seu improviso explorou à exaustão as idéias desenvolvidas nas quatro sessões da gravação original. Essas iniciativas podem até ter gerado certo furor na crítica, mas, no final das contas, todos os músicos citados foram aceitos como artistas sérios e importantes no cenário artístico atual.

A verdade é que o jazz sempre teve certa afinidade pelas canções pop. Mesmo os standards, a que os intérpretes costumavam restringir-se, não passam, em sua maioria, de trechos da trilha sonora de filmes e musicais das décadas de 30, 40 e 50. “Summertime” faz parte da ópera “Porgy and Bess”, de Gershwin; “My Funny Valentine” foi composta pela dupla Rodgers & Hart para o musical “Babes in Arms”; “All of You”, de Cole Porter, integra a trilha do filme “Silk Stockings”; e assim por diante. No fundo, essa nova tendência não passa de uma recuperação de um hábito antigo. “Canções realmente boas te deixam com um sentimento de possibilidade e infinitude”, afirmou Brad Mehldau numa entrevista. E se isso é verdade para as canções que nossos avôs ouviam em seus gramofones, por que não pode ser verdade para as canções que nós ouvimos em nossos iPods?

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segunda-feira, 22 de março de 2010

Superguidis, do Superguidis: Not A Teenage Wasteland

Superguidis - Superguidis - 2010

Certa vez, o poeta Arthur Rimbaud disse: "ninguém é sério aos dezessete anos". Os integrantes do Superguidis podem já ter chegado aos vinte, mas mantêm o espírito juvenil. E é justamente por não se levar tão a sério que a banda chega ao terceiro disco exibindo frescor e evolução em sua sonoridade.

A banda, formada por Andrio Maquenzi (voz e guitarras base), Lucas Pocamacha (guitarra e vocais), Marco Pecker (bateria) e Diogo Macueidi (baixo), canta as agruras (muitas) e as vitórias (poucas) do cotidiano de um adolescente de classe média baixa que descobre acorde a acorde como se relacionar com o amor e o mundo.

É como querer consolar "As Camisetas" que não vão ver mais uma garota e acreditar que tudo dá errado apenas com você ("Por que será que sempre chove toda vez que alguém te abandona?"), é o medo de ficar só pra sempre ("De repente o medo de morrer sozinho me incomoda mais que o usual"), é a dificuldade da construção e da exibição da própria personalidade - se é que isso existe: "Com tanto artifício assim , é difícil ser você mesmo". Tudo isso em guitarreiras canções que mostram que eles foram educados na escola Pavement/Guided By Voices/Nirvana de música.

Como todo adolescente que uma hora se cansa da escola, os Superguidis também ultrapassam os muros dessa academia e brincam com violões e pianos - remetendo ao Smashing Pumpkins em "Roger Waters" - e suavizando o som de algumas guitarras lembrando o Foo Fighters, como em "De Mudança". Aqui talvez se mostra um novo caminho à frente da banda, que pode começar a soar repetitiva se insistir em emoldurar suas canções nos clichês do rock noventista.

Mas, se há uma faixa que de alguma maneira pode sintetizar o que são os Superguidis , ela aparece aqui: "Aos Meus Amigos", a última e a melhor do disco. Traz à tona tanto a sensação de invencibilidade juvenil ("As lombadas não adiantam mais/Estou de bicicleta"), o pessimismo loser - expressão redundante, mas que faz sentido - ("Na escola de errar, eu sei/Já sou um graduado") e o espírito de gratidão à turma ("Aos meus amigos/A simplicidade de quem tem/Um par de tênis furado"). Melhor assim, que eu não estou só, cantam eles no refrão de "Aos Meus Amigos". Nem nós, eternos adolescentes.

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domingo, 21 de março de 2010

Esse Você Precisa Ouvir: London Calling, do The Clash

London Calling - The Clash - 1979

Não tem como falar de London Calling sem falar de duas coisas: da capa e do contexto sócio-geográfico-musical em que foi lançado. A história da capa todos sabemos: a foto que transmite Punk puro somada à referência ao primeiro cd de Elvis se transformou em clichê e foi reproduzida milhares de vezes nas camisetas dos garotos de gerações posteriores. O tal do contexto é a Inglaterra de 1979. O movimento punk acabou aí? Ou estava em seu auge?

Depende. Do ponto de vista musical, pelo menos, estava em seu auge. Os primeiros acordes já anunciam ao mesmo tempo a maturidade musical (entenda como menos distorção) e o aviso de que Londres está chamando para um recado. As faixas, de fato, possuem solos nada sofisticados, de curta duração e as letras, politizadas - apesar de alguns críticos afirmarem que o Clash não sabia do que falava - cumprem o papel punk; a produção excelente, saxofones freqüentes e pianos ocasionais dão um tom muito sofisticado, sofisticado demais se comparado ao Nevermind The Bollocks de dois anos antes; além disso, os backing vocals de Mick Jones sempre foram uma característica que os diferenciou das demais bandas punk.

Antes de tudo, apesar de estar em todos os top10 álbuns de todos os tempos, saiba que este não é um disco "Death or Glory": até pessoas que não gostam de rock o acharão agradável. As músicas são parecidas entre si estruturalmente, mas não sonoramente, como deve acontecer num bom álbum. E ele não é repetitivo, mesmo com 19 faixas.

Este é um daqueles 1001 discos que você precisa ouvir antes de morrer. Cada faixa tem seu toque e, bom, muitas delas são verdadeiros clássicos do rock. Sinceramente, a ordem não importa. Trinta anos depois ainda faz sentido ouvi-lo, mesmo que aos pedaços. O encarte é lindo. Possui muito mais fotos como a da capa e letras estilizadas, com pequenas alterações e rascunhos. Pra falar a verdade, nunca cheguei a baixei álbuns inteiros, mas tenho orgulho de ter este na minha estante. Mostrei o CD para a minha mãe essa semana no carro, apresentando-o como uma banda punk de verdade. No final ela disse "É só rock pra mim". Talvez seja. But We Like It.

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85 Letras e um Disparo: da periferia para o mainstream


Underground é um termo que se aplica a todas as artes e se estende por muitas culturas há décadas. Como se sabe, ele diz respeito ao “subterrâneo”, uma cena ou artistas que não têm grande visibilidade. A palavra em inglês é muito recorrente, mas acontece de variar de um lugar para outro; na República Tcheca usa-se a tradução literal “podzemi”. Aqui, até mais comum do que underground (e com diferenças de sentido), é marginal.

Ademiro Alves, que publica sob o apelido Sacolinha, faz parte da já consolidada literatura marginal. Eu li seu livro de contos, 85 letras e um disparo. A edição mais recente (2007) é publicada pela Global Editora, que tem uma coleção inteira destinada à literatura periférica – outro nome, bem menos ambíguo. Esse é o nome da tal coleção, “Literatura Periférica”. Consolidada porque além de serem publicados por editoras – eles poderiam estar sendo distribuídos artesanalmente - esses livros são até vendidos em livrarias grandes, coisa que pra mim não chega a ser muito underground, diga-se de passagem. O que é excelente.

O livro retrata a realidade do autor; o próprio fala um pouco dela no Provocações da Tv Cultura. Cotidiano, dinheiro curto, violência e por aí vai. Talvez o 85 letras não impressione os mais exigentes em termos estilísticos e temáticos, e talvez a história do Sacolinha seja mais interessante do que as dos contos, mas e daí? O importante é que está havendo exposição desses autores e interesse por parte da mídia, editoras e pessoas influentes; o prefácio do 85 letras é do Moacyr Scliar. Esse tipo de exposição possibilita que os projetos, pessoais ou não, como os saraus, cresçam e se aperfeiçoem, ganhando a visibilidade que é a princípio parece ser incoerente com um dos nomes que foi dado à cena (roubando o termo da música de novo).

O marginal/periférico transita pelas áreas prestigiadas e não é secreto ou escondido, diferentemente do underground/subterrâneo, que perde essa designação quando consumido pelo grande público. Não é uma proposta de autores como Sacolinha e o pioneiro Ferréz ficar no subterrâneo, é o contrário, e o sinal de que estão tendo sucesso é alguém que não acompanha avidamente o que tem de mais novo na literatura nacional, conhecer seus trabalhos, como aconteceu comigo.

Produções nacionais em geral são negligenciadas. As atuais, literárias, são mais ainda. É muito mais fácil consumir arte que pertence àquele consenso internacional dos intocáveis e inquestionavelmente bons. Falo por mim, mas acredito que seja uma constante, e isso é muito hipócrita, já que grande parte desses intocáveis sofreu o mesmo no seu tempo. O livro do Sacolinha, meu primeiro contato por escrito com a periferia, foi um convite à reflexão sobre a relação de pessoas que se dizem amantes da arte com o novo e com meio em que vivem.

Dedicado a quem diz que o cinema morreu, a literatura morreu, o rock morreu...

"Os personagens de Sacolinha vivem em um mundo particular, sem aberturas, sem esperanças, sem horizontes. Vivem imersos na violência, de tal modo que a violência perdeu o sentido.
O que é viver, amar? Como vêem o mundo, como se relacionam, que chances têm, com o que sonham? Muitas vezes são vazios.

O desespero é muitas vezes tranqüilo, sem exaltações. Veja o crescendo do conto "Yakissoba", em que o escritor tenta vender seus livrinhos e nada consegue, é só recusas, recusas, e a aceitação, como se aqueles não fossem normais. Essa gente da periferia vive o mundo do não, do não constante, o não perene, o não que segue grudado na pele, no coração."

Ignácio de Loyola Brandão.

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segunda-feira, 15 de março de 2010

Esse Você Precisa Ouvir: Transa, de Caetano Veloso

Exilado em Londres em 1972, Caetano Veloso fez um disco ímpar na sua discografia e na música brasileira: Transa. Marcado pelo tema da saudade e do estranhamento em terras distantes, o cantor faz diversas pontes entre o lá e o cá, entre o clássico e o popular, entre as duas línguas em que se dividia sua vida naquele momento. Além disso, trata-se de uma obra onde as pesquisas musicais do tropicalismo atingiram talvez seu melhor resultado.

No disco anterior, Caetano Veloso, do ano anterior, alguns desses temas já apareciam, especialmente na pungente versão de "Asa Branca" e na clássica "London London" (depois regravada com sucesso, entretanto destacada de seu contexto original, pelo RPM em seu multiplatinado "Rádio Pirata ao Vivo"). Entretanto, o que era apenas implícito no auto-intitulado disco antecedente, aqui fica totalmente à mostra.

O disco se abre com "You Don't Know Me" (o link abre para a canção no Youtube), bem acabada mistura de bossa nova e rock'n roll, em cuja letra o baiano mostra-se indecifrável e sozinho e também se revela fruto da miscigenação brasileira (na citação de Carlos Lyra: "Nasci lá na Bahia de mucama com feitor"). Em seqüência, "Nine Out Of Ten", que escancara a sensação de estar vivo ("Feel the sound of music banging in my belly") apesar da tristeza e da nostalgia que o abate na terra da Rainha ("Nine out of ten movie stars make me cry, but I'm alive").

Evocando ao mesmo tempo Gregório de Matos (a fim de criticar os mandos e desmandos vigentes na pátria tupiniquim: "Triste Bahia/a mim vem me trocando e tem trocado/tanto negócio e tanto negociante") e canções de roda, "Triste Bahia" é uma longa litania onde se destacam o ritmo forte da percussão e a final mensagem de paz ("Trago no peito a estrela do norte/Bandeira banca enfiada em pau forte").

"It's a Long Way" cita Beatles, Caymmi e Vinicius de Moraes para mais uma vez reiterar a idéia da saudade e de que ainda havia um longo caminho a percorrer para chegar à liberdade. "Mora na Filosofia", samba de morro de Monsueto e Arnaldo Passos, é outro exemplo do aperfeiçoamento do Tropicalismo: recupera uma canção tida como brega, assim como em "Tropicália ou Panis et Circences", quando regravou "Coração Materno" do ébrio Vicente Celestino. "Nostalgia (That's What Rock'n Roll Is All About)", um rock alegre, pra cima, de certa forma metalingüístico, encerra o álbum cantando sobre o que faz o rock - e a música em geral - ser o que é.

De volta à pátria, Caetano adentrou canaviais complexos em Araçá Azul (de 73), brincou com a simplicidade em Jóia/Qualquer Coisa (ambos de 75), soltou a franga no final dos anos 70 com o disco Bicho, começou uma carreira de intérprete nos anos 90 (em algumas horas acertada, em "Fina Estampa", outras tantas muito frustrante, como em A Foreign Sound) e de tempos em tempos, irrompe com declarações bombásticas e momentos cômicos ("Ême-tê-vê, bota essa p**** pra funcionar!").

As impressões digitais de Transa estão bem presentes no cenário de hoje: é possível senti-las tanto em Chico Science & Nação Zumbi quanto no Skank, passando pelos cariocas da Orquestra Imperial e pelo samba-rock-afoxé do alagoano Wado. Em busca de renovação, o próprio Caetano revisita o conteúdo do álbum, como fez recentemente em seu Zii e Zie, um disco de "transambas", segundo o cantor. Enfim, ouso dizer: este é o melhor disco de Caetano - o que você está esperando para transá-lo?

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domingo, 14 de março de 2010

Música na geração Copy Paste

A música de Gregg Michael Gillis foi chamado pela The New York Times Magazine de “um processo legal esperando para acontecer”. Não que ele cante sobre temas polêmicos ou algo do gênero; ele simplesmente faz uso de gravações de outros artistas sem pedir permissão ou pagar royalties. Alguns diriam que é um exagero processá-lo por isso mas, bem, se há algum caso para o qual esse exagero é apropriado, é esse: as canções que Gillis grava sob o pseudônimo de Girl Talk baseiam-se unicamente em trechos surrupiados de outros artistas. Só nos dois minutos e quarenta segundos da faixa “Once Again” (o link abre para um 'guia dos samples' feito por um fã, no Youtube), que abre seu álbum de 2006, “Night Ripper”, fãs conseguiram identificar 19 samples, incluindo trechos de músicas do calibre de “Wonderwall”, do Oasis, “Foreplay/Long Time”, do Boston e “Bittersweet Symphony”, do the Verve (que, diga-se de passagem, já foi também alvo de polêmica a esse respeito). É quase um caça-palavras musical.

Exageros à parte, Gillis é só mais um exemplo de uma tendência que vem se solidificando ao longo das últimas décadas. Na década de 80, produtores de hip-hop elaboravam suas batidas a partir de clássicos do P-Funk; na década de 90, Beck Hansen cantava acompanhado por uma gravação acelerada da bateria de Charlie Watts, dos Stones, enquanto o flautista de acid jazz St. Germain solava ao som de A Tribe Called Quest; hoje, o que era exceção tornou-se padrão. Se no passado era natural que qualquer solista tomasse emprestados alguns licks de suas principais influências, agora é lugar-comum que todo músico, produtor ou DJ tenha em seu repertório algumas fatias de suas gravações preferidas às quais recorrer sempre que falta algo em uma composição.

Plágio? Alguns parecem pensar que sim. O número de desentendimentos legais ligados a questões de autoria nunca foi tão grande. A fronteira entre “cópia descarada” e “homenagem musical”, entretanto, tornou-se extremamente vaga: em seu primeiro álbum, por exemplo, o grupo francês Justice dá crédito a somente 3 samples, mas numa entrevista com a MTV canadense, um dos membros do duo admitiu ter usado trechos de mais de 300 álbuns em sua concepção. Em suas palavras: “nós usamos partes minúsculas que ninguém consegue reconhecer. [..] Nem mesmo 50 Cent iria perceber, mas se você ouvir ‘Genesis’, a primeira faixa do disco, ouvirá samples de Slipknot, Queen e 50 Cent”. Cada vez mais a questão se afasta da esfera legal e se aproxima da esfera artística: colagens musicais são uma forma de arte?

Por enquanto, essa pergunta segue sem resposta. Enquanto isso, torna-se cada vez mais raro ouvir uma canção completamente original. Isso é um problema? Ainda não é possível dizer. Só nos resta observar que a música atual atingiu um nível de antropofagia que nem mesmo Oswald de Andrade ou os tropicalistas conseguiram imaginar. E, claro, aproveitar esse universo cada vez mais fértil de intertextualidade musical.

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