domingo, 21 de março de 2010

85 Letras e um Disparo: da periferia para o mainstream


Underground é um termo que se aplica a todas as artes e se estende por muitas culturas há décadas. Como se sabe, ele diz respeito ao “subterrâneo”, uma cena ou artistas que não têm grande visibilidade. A palavra em inglês é muito recorrente, mas acontece de variar de um lugar para outro; na República Tcheca usa-se a tradução literal “podzemi”. Aqui, até mais comum do que underground (e com diferenças de sentido), é marginal.

Ademiro Alves, que publica sob o apelido Sacolinha, faz parte da já consolidada literatura marginal. Eu li seu livro de contos, 85 letras e um disparo. A edição mais recente (2007) é publicada pela Global Editora, que tem uma coleção inteira destinada à literatura periférica – outro nome, bem menos ambíguo. Esse é o nome da tal coleção, “Literatura Periférica”. Consolidada porque além de serem publicados por editoras – eles poderiam estar sendo distribuídos artesanalmente - esses livros são até vendidos em livrarias grandes, coisa que pra mim não chega a ser muito underground, diga-se de passagem. O que é excelente.

O livro retrata a realidade do autor; o próprio fala um pouco dela no Provocações da Tv Cultura. Cotidiano, dinheiro curto, violência e por aí vai. Talvez o 85 letras não impressione os mais exigentes em termos estilísticos e temáticos, e talvez a história do Sacolinha seja mais interessante do que as dos contos, mas e daí? O importante é que está havendo exposição desses autores e interesse por parte da mídia, editoras e pessoas influentes; o prefácio do 85 letras é do Moacyr Scliar. Esse tipo de exposição possibilita que os projetos, pessoais ou não, como os saraus, cresçam e se aperfeiçoem, ganhando a visibilidade que é a princípio parece ser incoerente com um dos nomes que foi dado à cena (roubando o termo da música de novo).

O marginal/periférico transita pelas áreas prestigiadas e não é secreto ou escondido, diferentemente do underground/subterrâneo, que perde essa designação quando consumido pelo grande público. Não é uma proposta de autores como Sacolinha e o pioneiro Ferréz ficar no subterrâneo, é o contrário, e o sinal de que estão tendo sucesso é alguém que não acompanha avidamente o que tem de mais novo na literatura nacional, conhecer seus trabalhos, como aconteceu comigo.

Produções nacionais em geral são negligenciadas. As atuais, literárias, são mais ainda. É muito mais fácil consumir arte que pertence àquele consenso internacional dos intocáveis e inquestionavelmente bons. Falo por mim, mas acredito que seja uma constante, e isso é muito hipócrita, já que grande parte desses intocáveis sofreu o mesmo no seu tempo. O livro do Sacolinha, meu primeiro contato por escrito com a periferia, foi um convite à reflexão sobre a relação de pessoas que se dizem amantes da arte com o novo e com meio em que vivem.

Dedicado a quem diz que o cinema morreu, a literatura morreu, o rock morreu...

"Os personagens de Sacolinha vivem em um mundo particular, sem aberturas, sem esperanças, sem horizontes. Vivem imersos na violência, de tal modo que a violência perdeu o sentido.
O que é viver, amar? Como vêem o mundo, como se relacionam, que chances têm, com o que sonham? Muitas vezes são vazios.

O desespero é muitas vezes tranqüilo, sem exaltações. Veja o crescendo do conto "Yakissoba", em que o escritor tenta vender seus livrinhos e nada consegue, é só recusas, recusas, e a aceitação, como se aqueles não fossem normais. Essa gente da periferia vive o mundo do não, do não constante, o não perene, o não que segue grudado na pele, no coração."

Ignácio de Loyola Brandão.

5 comentários:

  1. Adorei o texto, Cris - como quase sempre. E fiquei curioso pela literatura do Sacolinha. (Momento interesseiro in) Como eu arranjo? Vc tem? (momento interesseiro off)

    Beijo!
    PS: Foi muito bom entrar no blog e não ver o meu post como o primeiro. =)

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  2. Que interessante essa coleção! E como tem sido a recepção disso? do Ferréz eu gosto bastante, e tenho certeza de que não é apenas um fenômeno "curioso" e "exótico". Preciso conhecer esse Sacolinha também. Valeu :)

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  3. Obrigada! Estou com você nesse "quase", haha Então, esse livro dele é fácil de achar. Tem até na Cultura. Mas eu te empresto, no próximo clube eu lembro de levar.

    A recepção comercial eu não sei, mas no círculo é muito bem aceito - por isso que eu coloquei essa citação do Brandão. E realmente, não é um fenômeno "curioso", é uma coisa muito sólida com muito futuro, creio eu ;)

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  4. Eu espero que a ida do Sacolinha à calourada da Letras tenha inspirado o texto! rs Muito bom, Cris! :)

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  5. Haha, pois é né... Valeu Paula! ;)

    (Obrigada pelos comentários, precisamos muito desse feedback!)

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