quarta-feira, 13 de outubro de 2010

A estrada de Chaplin

Alguns dizem que Carlitos era um personagem imoral, outros, amoral. Discordo dos dois. Os chutes e pontapé e socos e tapas e meninices do vagabundo nos filmes eram brincadeiras mesmo, eram a parte da risada, pois, do outro lado, e esse sim era imoral, estava a sociedade, que nos dava pontapés bem piores. Era a menina injustiçada do circo, era a fábrica que engolia os trabalhadores, o nazismo. Todas as brincadeiras de Chaplin pareciam extremamente civilizadas perto disso. Muitos não percebem essa seriedade dos filmes de Chaplin, que, mesmo fazendo sorrir, levava à reflexão de algumas parcelas obscuras da vida. Por isso diz-se que Keaton era melhor comediante. Podia ser mesmo, mas Chaplin era um artista completo. Suas gags tinham um lado muito verdadeiro, que não deixavam a piada acabar em si mesma, era o próprio Carlitos, extremamente ingênuo, que, através do humor, fazia aparecer as discrepâncias e contradições do mundo.

Contudo, essa idéia de gerar outras sensações à parte da diversão não se convertia em um estímulo à luta por uma ideologia. Consigo enxergar, assim como muitos, doses expressivas de marxismo em Tempos Modernos. Mas realmente acho que estamos condicionados a fazê-lo. É muito icônica a cena em que, tentando devolver uma bandeira que alguém deixou cair no chão, Carlitos é tomado por líder de uma revolta popular. É esse o problema, Chaplin pensa que, antes da ação massificada, é preciso o ser humano em um gesto individual, e que, naqueles tempos modernos e estranhos, que não mudaram muito, qualquer boa intenção pode, sem querer, ser confundida com algo do tipo pertence a tal ou tal partido ou tal classe política. Chaplin tinha a consciência, antes de qualquer escolha política, que as decisões eram feitas pelas pessoas, e não por um sistema todo estruturado que ajudava a destruir os sujeitos, por isso o valor do gesto. Quando os filmes terminam ficamos com vontade de fazer o bem, e é isso que importa, antes de qualquer baboseira muito teórica. É essa percepção exata daquilo que nos faz iguais, a humanidade, que deixa Chaplin à frente de muitos cineastas. Os filmes tocam, simultaneamente, o coração e a cabeça. São de uma empatia calculada e impressionante e também tem seu lado intelectual. Nesse sentido, despertar o que existe em cada um de nós, Chaplin aproxima-se bastante de outros de seu tempo, como Gandhi, que teve grande prazer em conhecer.

Após a primeira guerra, Chaplin parecia colocar-se como uma alternativa entre o eterno duelo capitalistas vs. comunistas. Essa terceira via era o humano, o humanismo. Era retornar ao básico, a essência e, assim, conseguir enxergar o Homem. Em sua chegada de volta à Inglaterra, seu país de origem, viagem que seria somente um passeio, mas acabou virando um exílio por suas supostas posições “esquerdistas” e sua presença na lista negra de Hollywood, uma enxurrada de repórteres perguntaram sobre suas convicções políticas, ao que respondeu: “Não penso que se deva dividir as pessoas em categorias segundo suas opiniões. Isto conduz ao fascismo. Por minha parte, não pertenço a nenhum partido político. A vida tornou-se realmente demasiado técnica e cada um de nós deveria andar sempre com um guia das regras de etiqueta no bolso. Porque agora basta descer um passeio com o pé esquerdo para ser tido por comunista...”. Enxergar no ser humano aquilo que parece óbvio, sua humanidade intrínseca, é algo genial e que poucos conseguiram, por isso Chaplin continuará falando com todas as gerações que se prestarem a assistir seus filmes, porque aposta em sentimentos universais.

No fim das contas, a moral de Carlitos é uma própria, e ingênua, parecida com a das crianças. Chaplin ensina a seus espectadores que não adianta crescer, ficar chato e conformado com o mundo; somente sem perder o espírito de criança é que podemos desvelar a hipocrisia. E, para que isto aconteça, não se pode desisitir no meio, ficar resignado. A maioria dos finais “open roads” dá essa impressão de que deve-se continuar a construir o próprio caminho, apesar das dificuldades da vida. É assim em O Circo, Tempos Modernos e outros. O final quase nunca é bom pra Carlitos, mas sempre acreditamos que ele vai se dar bem, que o final depois do final é feliz, que, se o fim não é aquele momento idealizado em que tudo dá certo, pelo menos a experiência valeu. E essa experiência da vida é feita de tudo: derrotas, vitórias, problemas, trabalho, amores, mas que, acima de qualquer decepção, a estrada sempre estará aberta para quem quiser seguir em frente e ajudar os outros.

Um comentário:

  1. Gostei muito. A reflexão foi feita da maneira que eu acho que Chaplin gostaria de que tivéssemos. Enxergá-lo como uma personagem humana, que prezava pelos valores humanos. Era isso que ele interpretava. A criança sem hipocrisia. E isso acaba sendo um tapa na cara dos adultos que formulam teorias comunistas ou capitalistas. Porque esses sempre são os primeiros a serem hipócritas. São os que fazem a revolução, unidos por um ideal, contra o que rege. Depois então, o liberal se tornou um conservador. E é aí que aparece Carlitos e, com suas sutilezas gritantes, nos faz pensar: Onde está o humano que sente? Muito bom, Arthur. Faz tempo que não o vejo! Muito bom, PTTP!

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