domingo, 31 de outubro de 2010

A Farsa de Tarantino

Kill BillQuem assiste a um filme costuma se sentir autorizado a fazer uma crítica baseada em seus gostos. Seu julgamento é orientado por um pensamento de identidade, de modo que é através dele que o sujeito busca sua diferenciação. Quando o repertório é pequeno, não gostar de Faustão parece ser suficiente, mas quando se depara com a possibilidade de acesso a praticamente qualquer tipo de conteúdo, o jogo se torna mais complicado. A meninada precisa correr atrás da especificidade máxima: cineasta polonês que gosta de metáfora, versão restaurada de filme cult , mensagem sublinear em filme infantil ... Daí nasce a crença em que o cinema de nicho é melhor que o cinema de massa, a crença em que Tarantino é muito diferente de Procurando Nemo. E não é.

Porque, em última instância, estão reproduzidas as mesmas estruturas de dramaturgia clássica. Não a dramaturgia de Aristóteles, mas a de Diderot e Campbell. A dramaturgia repensada à serviço da lógica de mercado e da ideologia burguesa. A dramaturgia que aliena enquanto forma estética. É a jornada do herói individual capaz de resolver os problemas que o mundo lhe apresenta. É a curva dramática e a valorização da subjetividade, que forçam uma ligação afetiva através da identificação com o herói. É o diálogo como garantia da intersubjetividade, que preserva as autonomias e as individualidades. A mudança é conjuntural, não estrutural. Ora é o mafioso blasé sem saber como lidar com a esposa do chefe, ora é a menina-ninja buscando a vingança sobre a morte de seu bebê, ora é o peixe-palhaço procurando seu filho pelo oceano.

O problema desse cinema cult moderno, no qual se enquadra o Tarantino, é a pretensão intelectual que ele carrega. Como se realmente existisse algum tipo de reflexão crítica por de trás de uns personagens perturbadinhos e uma história meio surreal, alguma experiência estética por de trás de uma montagem moderninha. Porque uma coisa é você assumir o aspecto comercial e fazer uma obra esteticamente orgânica, ainda que não-crítica; outra é você fingir que é imune às estruturas de mercado e se propor uma grande obra de arte quando não diz nada com nada. E pra maquiar essa falta do que dizer carrega na estética moderninha. Dos artifícios de Tarantino, dois se destacam: o fascínio estético e a estrutura referencial.

A sensualidade enquanto elemento valorativo não é de uso exclusivo de Tarantino, muito pelo contrário, é parte integrante da linguagem da mercadoria. E o estímulo sensual é conhecido de longa data pelo sujeito moderno, das cidades futuristas, dos filmes 3D e das explosões de carro. Mas a forma com que Tarantino o faz é particularmente agressiva. É a roupa de couro amarela, os rios de sangue banhando a tela, a velocidade com que as imagens se sobrepõe. A delícia do design sonoro do corte de uma lâmina é capaz de anestesiar completamente o senso crítico, de modo que o sujeito entra em uma espécie de percepção orbital para com o filme. E em momento nenhum surge espaço para o questionamento moral da banalização da morte. Também não existe espaço para a discussão da hegemonia da amoralidade, como alguns propõe. A violência se vale por si só. É o modo pelo qual se exerce fascínio estético.

Aliado a isso, é criado toda uma estrutura referencial, uma espécie de pastiche. Seus filmes são invadidos por referências à cultura pop e a ele mesmo. Quanto mais obscuras, mais particulares, melhor. É como se ele reproduzisse no próprio filme o pensamento de identidade que orienta o gosto. Cria uma espécie de jogo de adivinhação que exige um repertório muito particular, como se compartilhar de suas referências fizesse a individuação do espectador, demarcasse a diferença entre eles e os outros. É um jogo de afirmação de identidade, de preservação de autonomias. Garante a autonomia do filme, a autonomia dos objetos a que faz referência e a autonomia do espectador que as caça. A associação de elementos díspares dentro do universo ficcional se torna um elemento valorativo, se torna parte da estética moderninha. Ora preserva a autonomia de suas referências, ora as imbui no próprio conceito do filme. A estrutura referencial se emancipa, e passa a se valer por si só.

O cinema de Tarantino é tipicamente moderno – do preenchimento das lacunas dramáticas à estética da fascinação à estrutura referencial – e a modernidade se torna valor de troca, se confunde com qualidade. A pretensão intelectual que ele carrega só intensifica seus efeitos. Contribui para a alienação dos jovens fascinados, incentiva a crítica cultural e se vale do pensamento de identidade. Mas os que acham que o cinema de nicho é imune às estruturas de mercado surpreendem-se ao ver o poder de persuasão de Tarantino. Ele se vale de uma estrutura dramática massificada, mas através de seu preenchimento fantasioso e de sua realização estética moderna é capaz de fingir uma obra de arte. Por de trás de um péssimo cineasta há um grande vendedor.

16 comentários:

  1. Bom texto, Boina.

    Apesar das minhas críticas pessoais à maneira como você vê a questão da jornada do herói, acho que o texto melhorou bastante na questão da "acessibilidade". Ficou mais fluido, compreensível de ler e instigante, não destoando dos outros textos do blog. Congrats.

    Não chego a concordar com a sua conclusão - me irrita um bocado essa visão de "tudo é voltado para o lucro, tudo foi feito pra vender, nada é arte" - mas acho interessante trazer esses pontos de vista à baila.

    Mais uma vez, parabéns.

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  2. Eu tentei te ligar pra falar do texto. Duas vezes. Mas você não atendeu, então acho que vou ter que recorrer a esse caminho proibido ;)

    Parabéns, Boina, o texto está realmente bom. Primeiro, claro, pelo conteúdo. Eu não concordo com a interpretação do Noa de que o a sua tese é que, eu cito, "tudo é voltado para o lucro, tudo foi feito pra vender, nada é arte". Até porque a gente já discutiu o papel da arte num mundo ideológico. Acho que o que o texto representa é a aplicação de um pensamento maior - o de um mundo formado por ideologias e afirmações individuais de identidade sempre dentro do modelo de uma ou mais delas - aplicado a uma situação específica. E isso é uma característica de todo grande texto reflexivo.

    Agora, o que realmente me impressionou foi que aparentemente você fez um esforço pra se tornar mais acessível. E eu achando que você ia tomar uma posição boina (e, claro, de afirmação de identidade) de que "tornar compreensível é adequar-se à ideologia" ou algo assim. Mas tirando uma ou outra expressão de caráter bem acadêmico ("sujeito busca sua diferenciação", "diálogo como garantia da intersubjetividade", usar "estético" como adjetivo a cada 5 frases, etc.) que provavelmente você resistiu a substituir (acredite se quiser, eu já passei por isso), o texto está bem adequado a um blog. O que, por mais que possa parecer um insulto, é muito bom.

    Ah, e se prepare. Você vai ouvir bastante quando a gente divulgar isso na comunidade do Tarantino. Mas é que realmente incomoda perceber que o motivo que te faz gostar de Tarantino é tão não-nobre quanto o motivo que faz, sei lá, alguém gostar de Tati Quebra-Barraco.

    Mas incômodo é bom, não?

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  3. Conteúdo impecável, mas a forma.. estranhei demais.
    Ficou uma mescla de termos teóricos com linguagem simplista demais que as vezes até pareceu um desabafo. Entendo que isso pode ser uma tentativa de adequar o texto ao blog e acho que com essa mudança mais pessoas vão comentar(ou seja, entender mais o que você diz :P)
    Mas ainda prefiro seus textos mais rebuscados :)
    smacks virtuais

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  4. Ele só percebeu que or mais que "tornar compreensível é adequar-se à ideologia", "escrever de forma rebuscada com termos acadêmicos" é uma forma individução que, portanto, ratifica a ideologia, então no fundo da na mesma.

    "A associação de elementos díspares dentro do universo ficcional se torna um elemento valorativo, se torna parte da estética moderninha."
    Essa foi a frase "Vou tomar uma breja no curras da facul", se é que vc me entende. ;D

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  5. "crença em que"? "vingança sobre"? Penso que você podia melhorar seu português antes de começar a escrever.

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  6. O Eu creio em Deus, logo eu creio em que Deus exista.

    E vingança é um substantivo, núcleo do objeto "vingança sobre a morte de seu bebê. "Sobre a morte de seu bebê" complementa o sentido do núcleo, é um adjunto adnominal.

    Não tem nada de errado em nenhuma das duas frases

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  7. No primeiro caso, o problema é de elegância na escrita. Mesmo que estivesse correto, não é agradável dizer "crença em que". De qualquer maneira, sua inferência não deixa de ser petulante e ridícula, pois, utilizando-se da mesma lógica, poderia-se dizer: Eu confio em Deus, logo eu confio em que Deus exista. Errado, pois Deus é núcleo do objeto direto no primeiro caso e, no segundo, seria já o sujeito de uma orção subordinada, guardando, portanto, outras relações que não são análogas.
    De qualquer maneira, a frase utilizada pelo autor é "Nasce a crença em que o cinema de nicho". Pois bem, nascer é verbo intransitivo, logo a crença é seu sujeito. A oração "que o cinema de nicho" está subordinada a oração "Nasce a crença", porém essa relação(oração subordinada adjetiva restritiva) não ocorre por intermédio da preposição "em", mas simplesmente do pronome relativo "que". Outra opção era pela oração subordinada completiva nominal, que, então, chamaria pelo uso da preposição "de", logo: Nasce a crença de que o cinema de nicho.


    No segundo caso, o sofisma é ainda pior. O problema não se encontra na sintaxe, a qual você fez explicitou desnecessariamente. Fato é que a regência de "vingar" não comporta a preposição "sobre", mas tão somente "de" e "em"(Dicionário Celso Luft, logo não se pode dizer vingança sobre algo ou alguém(além do que é sonoramente é extremamente incômodo).

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  8. Eu acho que a partir do momento em que a discussão passa a ser orientada pelo princípio de "quem lembra mais regras arbitrárias de regência, sintaxe e concordância", ela se fechou em si mesma e parou de valer a pena.

    Sério, se a única coisa que você tem pra deslegitimar o texto são os erros de português que o autor cometeu (ou não), então acho que não vale nem a pena comentar.

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  9. hmm.. cheiro de FFLCH no ar.

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  10. Eu não se é implicância ou só falta de repertório da sua parte, mas não tem absolutamente nada de errado com "crença em que", nem em "confiança em que".
    Não vejo problema nenhum em se criticar a gramática ou o estilo literário de um texto, desde que isso seja feito da maneira correta.

    Quando a "vingança sobre", realmente é estranho, nesse caso atrapalha o "estilo do texto", se você prefere dizer assim. Mas não poderia ser substituído por "vingança de", já que o "de" estabelece uma relação entre os nomes completamente diferente do "sobre". Mas isso também não significa que o termo esteja errado, já que ele possui coerência semântica.

    Um dos possíveis problemas do estruturalismo barato que existe por de trás da sua crítica é esse. A linguagem escraviza o sujeito. O sistema linguístico se torna autosuficiente.

    Se a sua crítica realmente tiver algum tipo de suporte teórico e intelectual por trás, e não for tão arbitrária quanto parece, vá ler "A Aula" do Barthes pra coaprender a criticar seus professores.

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  11. http://images.cheezburger.com/completestore/2009/12/25/129062073932449522.jpg

    ;D

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  12. Tarantino pra mim sempre foi a Lady Gaga do cinema.

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  13. texto polêmico da porra.

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  14. O grande pecado do texto é levar o estrutural como possibilidade de análise materialista; como se existisse um modelo estrutural mais artístico e outro mais lucrativo. Talvez o auge da arrogância intelectual seja dizer que o espectador comum(o que é um espectador comum pra começo de conversa que não uma caricatura preconceituosa: aquele que tem um gosto inferior ao do espectador incomum?) goste de obras mais "simples".
    De fato, são poucos os que que gostam de Guimarães Rosa ou de Antunes Filho, ou Fellini; o que levaria a crer que a dificuldade de apreciação de uma obra é o contrário de lucratividade e isso, para alguns, é parte intrínseca de uma obra de qualidade. Por outro lado me parece muito mais provável que as obras tidas de qualidade na realidade são formas de entretenimento como qualquer outra, um entretenimento mais refinado, mas no fundo não tão diferente de qualquer outro: pessoas acostumadas a assistir procurando Nemo gostam desse filme e de modelos parecidos(porque é óbvio que há um modelo comum aos filmes blockbuster), enquanto pessoas acostumadas à David Lynch gostam de filmes com uma estrutura diferente. Ao contrário do que você disse é sim uma questão de gosto, o que ocorre é que o gosto refinado de alguns ganha um respaldo na crítica, como se o gosto destes fosse o modelo a ser seguido.
    Não digo que não haja uma estrutura mais fácil de ser apreciada em certos filmes(até porque o modelo desses filmes está imbuido nas nossas experiências desde cedo), o que não creio é que uma obra artistica seja apenas aquilo que é do gosto de um especialista, nem que a qualidade da estrutura seja sinônimo de qualidade artística. Quanto ao último caso: Osman Lins é superior à Faulkner?

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  15. Quando eu vejo toda essa reclamação a respeito da "lógica de mercado e da ideologia burguesa" eu sempre me lembro do camarada Friedman:

    "A major source of objection to a free economy is precisely that it [...] gives people what they want instead of what a particular group thinks they ought to want."

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  16. Primeiro: todo filme foi feito para ser visto (se houver algum que não foi, ninguem viu, então não vem ao caso), logo, pense duas vezes antes de dizer que algum filme perde em qualidade por se adaptar ao mercado, pois estará falando de todos.

    Segundo: Procurando nemo é um filmaço (xD)

    Terceiro: Filmes não foram feitos para levantar reflexões críticas. Sim, eles podem ser utilizados para tal, mas não apenas para isso. Por exemplo: se um filme foi feito para divertir e simplesmente diverte, ele funciona em seu propósito.

    Não vejo os filmes de Tarantino como filmes meramente comerciais que fingem levantar falsos questionamentos morais para parecerem intelectuais.
    São simplesmente cinema, e possuem, sim, qualidade. Ou será que um filme que mistura ação, faroeste, kung-fu e samurais, com uma trilha sonora impecável e a estética que Kill Bill apresenta não possui qualidade?

    Agora, se alguém vai assistir a um filme de Tarantino procurando parecer intelectual e refletir sobre as mazelas da humanidade, ao invés de simplesmente se sentar e aproveitar um ótimo e completo filme , bem, seria melhor que esse alguém nem começasse.

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