quinta-feira, 6 de maio de 2010

O jazz pós-moderno de Christian Scott

fotos por Markus Lackinger e Víctor Alonso, respectivamente

Sejamos bem honestos: desde 1970, praticamente, o jazz foi relegado à condição de peça de museu, estudado em conservatórios e apreciado somente por uma minoria de intelectuais. Responda rápido: quando foi a última vez que você ouviu uma gravação de jazz que não fosse tocada por Miles Davis ou John Coltrane, que não fosse “Take Five” (se você não sabe de que música eu estou falando, abra o link. Você vai perceber que você sabe de que música eu estou falando.) e que – por favor, diga que não – não tenha sido tocada na trilha sonora do Jô Soares? Pode até ser que isso se deva à indústria cultural e o esclarecimento como mistificação das massas ou outro desses conceitos impossíveis de se entender propagados por Adorno, Horkheimer e companhia, mas é fato que os próprios músicos não se esforçaram muito para fugir disso. Com raríssimas exceções, o jazz de hoje ou é o mesmo jazz que se tocava em 70, ou mudou muito pouco. E eis que nesse clima de água parada surge Christian Scott, um jovem de 27 anos vestindo roupas Dior, jeans Comme des Garçons e óculos Rayban, empunhando um trompete entortado e tirando dele um som que é mais ar do que som: um autêntico jazzman do século XXI.

Não me entenda mal. A música de Scott não é daquelas experimentações pseudo-moderninhas, “vamos misturar Louis Armstrong, mambo e psy-trance e ver no que dá” kind of thing. Longe disso. Antes de soar experimental, ele soa verdadeiro. Entenda: muitos dos artistas de jazz de agora isolam-se na tradição. Inspiram seu som em Sonny Rollins, tomam emprestados licks de Charlie Parker, compõem à maneira de Duke Ellington... no final, o que sobra é a versão musical de carne moída à fantasia. O que pode ser legal em certas ocasiões, mas certamente não tem individualidade. Aliás, esse problema não está restrito ao jazz: a fronteira entre “ser influenciado por” e “copiar descaradamente”, mesmo no rock e na MPB, é extremamente tênue. No caso de Scott... bem, talvez a questão seja mais complicada.

Quase sempre é idiota descrever música com palavras, pelo simples motivo de que toda canção encapsula muito mais sentimento do que é possível escrever. Afinal, se algum disco pudesse ser resumido a um texto, ele teria sido escrito e não tocado. Terei de apelar para isso agora, entretanto, para que vocês, queridos leitores que provavelmente não desejariam interromper a leitura do texto para ouvir um exemplo em mp3 ou no Youtube, entendam o meu ponto:

MAIS:

- A história de Christian é praticamente um clichê jazzístico: nascido em New Orleans, ele aprendeu a tocar com seu tio Donald Harrison, um trompetista que foi membro do conjunto de Art Blakey, os Jazz Messengers, durante a década de 80.

- O trompetista usa uma técnica de sopro não-usual: seu som é extremamente areado e sem vibrato. Segundo ele, é uma maneira de imitar a voz com que sua mãe cantava canções para ele, quando bebê.

- Seu trompete é especialmente fabricado: a boquilha é mais ampla, para facilitar a entrada de ar, e o bell (a ponta, de onde sai o ar) é elevada para que o músico consiga ver a platéia enquanto toca. Além disso, o músico apelidou-o "Katrina".

- O último disco de Scott, Yesterday You Said Tomorrow é um ótimo modo de começar a ouvi-lo, e uma ótima música para servir de introdução é sua versão da composição de Thom Yorke, "The Eraser".

- Scott tocará no Bridgestone Jazz Festival, em São Paulo, na quarta-feira, dia 19 de Maio. Clique aqui para comprar ingressos.

A primeira música de seu mais novo álbum (Yesterday You Said Tomorrow, lançado no começo desse ano como uma homenagem à década de 60) chama-se “K.K.P.D.” e abre ao som de uma guitarra tendo suas cordas acariciadas de uma maneira lenta e preguiçosa. Alguns segundos mais tarde, entra a bateria: frenética, caótica e com um número impressionante de baquetadas por segundo. Após um minuto em que as duas vozes interagem e exploram esse contraste, a guitarra passa a tocar dois acordes por compasso e a bateria se estabiliza numa frase baseada num ritmo ditado pelas duas caixas. E aí entra o trompete.

Certo, vamos voltar para essa frase da bateria. Isole-a dos outros instrumentos. Tire os pratos. Aumente o volume dos baixos e diminua o dos agudos. Pronto, você tem uma batida de hip-hop. Não que o baterista tenha pensado nisso enquanto tocava – aliás, é quase impossível imaginar a relação quando o grupo inteiro está tocando. Mas está aí: Christian Scott a dois passos de 50 Cent. Certo, talvez não a dois passos. Nem a uns cinqüenta metros. Mas vocês entendem a relação. A questão é que, em contexto, não soa como hip-hop. Também não soa como o jazz que todo mundo está acostumado a ouvir. Soa novo. E principalmente, soa honesto.

Na verdade, a genialidade não está em parecer hip-hop. Para falar a verdade, eu duvido até que essa semelhança tenha sido consciente. A questão é que, ao contrário da maioria dos seus contemporâneos, Scott não finge que ainda é a era Kennedy nem força sua música a parecer moderna: ela sai moderna naturalmente, exatamente como deveria sair de um músico que nasceu em 1983. O trompetista já foi chamado de “o Deus do estilo jovem de jazz”. Sinceramente, eu acho que ainda é cedo para fazer uma afirmação como essas. Ainda assim, é fato que ele fez mais do que qualquer outro para estabelecer um jazz que realmente pertença ao século XXI. Como disse em uma entrevista: “Se há alguém dizendo: ‘bom, isso é o que há e tudo que vem depois é lixo’, eu acho que também deve haver alguém do outro lado desse punho dizendo: ‘não, o que nós fazemos não é lixo. E nós vamos lutar contra vocês. E nós vamos ganhar.’”

5 comentários:

  1. hum, vou ir atrás para ouvir, mas digo que depois de ler o texto todo gostei da surpresa de saber que logo menos ele vai dar show por aqui!
    parabéns pelo blog, de novo! com certeza um dos meus "favoritos" mais queridos! beijo beijo

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  2. Pou, essa "K.K.P.D." tem uma baita pegada! Alucinei na bateria!

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  3. Federowski, que coisa. No começo, achava seus textos muito intragáveis, primeiro porque não tenho toda a história do jazz na minha cabeça, e segundo, porque o excesso de referências artísticas me repelia. Eis que li seu texto por completo, não me senti (tão) ignorante, e tive vontade de ouvir Scott. Sei lá, congrats ;)

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  4. Federowski, que coisa. Tem gente que acha seus textos intragáveis porque suas referências artísticas os repelem. Ainda bem que na sentença seguinte eles se explicam dizendo que não são tanto as referências que são particularmente repelentes mas sim a própria ignorância. Que legal seria se ao invés de não gostar do que não entendem as pessoas resolvessem entender para gostar.

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  5. Preciso dizer: Adorei seu texto.
    Sem dúvidas o meu texto preferido até então.

    Não concordo com a sua forma positiva de encarar a música, e nem entendo de jazz, muito menos conheço esse rapaz do qual você fala. Mas o texto defende seu ponto de vista muito bem. A linguagem incisiva e a confiança no que você fala ratificam seu ponto de vista tanto quanto o argumento.
    Opinião, argumento e linguagem nas medidas certas. Parabéns.

    Ganhou um sorriso.

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